Eu precisava lá estar uma vez mais e sentir mais a alegria, ouvir mais as melodias, aspirar o aroma das mais deliciosas iguarias
Pôr os pés na Itália, reviver a Itália, derramar o espírito pela Itália eram pensamentos que se infiltravam dentro de mim há muitos e muitos anos. Eu precisava lá estar uma vez mais e sentir mais a alegria, ouvir mais as melodias, aspirar o aroma das mais deliciosas iguarias que povoaram a minha infância.
O sol brilhava intensamente ainda quando entrei no carro que me levaria do aeroporto de Milão para a cidade de Piacenza. Percorríamos os arredores da grande cidade. Rodovias, viadutos e passarelas alinhavando-se a perder de vista.
Rodávamos por uma planura intensa. Montanhas eu somente veria muito mais além. Sentir a intensidade de um verão após meses de frio. Sentir a intensidade de um calor após intermináveis horas sob ar refrigerado foi mais uma das delícias que senti antes de entrar no carro que me levaria ao meu destino inicial.
E era dia ainda quando entramos na cidade de meu Nonno Pedro Gobbi. Fomos percorrendo, inicialmente, largas e arborizadas rodovias. Devagar, as ruas foram ficando mais estreitas. Fui introduzida aos tempos medievais. Prédios de poucos pavimentos mesclados a inúmeros palácios. Estava eu aspirando os ares de uma época histórica. De uma época gloriosa.
Eis que surge, de repente, o meu hotel. Por fora a mesma estrutura das demais construções. Em seu interior, a modernidade.
Estávamos num meridiano distante cinco horas do nosso. O café da manhã servido na aeronave, ainda em horário de Brasília, metabolizara-se há horas. Mas, mais do que sequer pensar em uma ceia, o mais importante era desembaraçar-me de minhas invernais indumentárias e permanecer, demoradamente, sob as tépidas águas de um chuveiro. Preciso era abrandar a tensa musculatura pressionada por longas horas de esperas e de voos.
Entro, enfim, num restaurante de sonhos, no andar mais alto do hotel. Restaurante rodeado de varandas. Com vista panorâmica para Piacenza que de luzes acesas espreitava uma noite nascente.
Poucas pessoas àquela hora a jantar. Até que eu colocasse minha mente no local onde estava. Até que, da janela de meu quarto, eu vistoriasse os arredores. Até que desse sinal de vida para os meus, a luz do dia há muito havia se retirado. Mesmo para quem costuma cear muito tarde, naquele meridiano já seria quase além da hora contumaz. Para mim era o instante natural. Das seis horas da tarde.
O hábito de sempre de se servir pães diversos juntamente com óleo de oliva foi o momento marcante para as lágrimas dentro da alma começarem a turbilhonar. E então o impoluto garçom que me servia traz para a mesa uma pequena e estreita tábua de madeira onde fatiou um pãozinho de macio miolo e casca crocante. A tabuinha trazia anexada em sua parte superior um grosso barbante, que passava pelo buraco ali existente. Para que fosse pendurada ao lado do fogão. Então as lágrimas represadas vieram à superfície. Igual à que meus Nonnos usavam.
E depois um Tortellini à moda de Piacenza. Acompanhado de uma taça de vinho regional. As taças são do tipo majestoso, grandes, assim como as que já conhecemos. Com todo o cuidado o garçom serve o precioso líquido. Apenas uma pequena quantidade. Que cobre tão somente um terço do recipiente de cristal. E sempre muita água. Mineral. Da região, também.
Do avarandado que circunda o restaurante eu ainda percebia nesgas de uma claridade distante que bordavam o relevo das montanhas num horizonte além.
Eram poucas e curtas as horas que eu passaria na terra de meu Nonno Gobbi e tanto para se ver, tanto para se admirar, tanto para se extasiar…
Eu ainda dormia no horário brasileiro quando fui acordada por um extasiante sol a explodir sobre mim. Às pressas alcancei o local do meu primeiro café da manhã na cidade banhada pelo rio Pó. Porque muito eu queria ver. Havia tanto a percorrer na cidade e em seu redor.
O recepcionista falou-me que andar por ali era muito fácil. Era só sair pela esquerda e fazer um contorno em torno de uns quatro ou cinco quarteirões, que muito do centro histórico da cidade eu poderia ver. Realmente. Não posso dizer o que mais me encantou. O sol já ia alto. Céu do mais puro azul. Sem nuvens. Temperatura nas esferas. Mas a vontade de por tudo andar e a tudo ver imperava.
Não sei dizer o que eu, naquela caminhada, teria visto de mais importante ou que mais me tivesse marcado a alma. Era um domingo de manhã. Não havia muita gente circulando por lá. A não ser turistas de câmeras em punho a tudo registrando. Era o último domingo de julho. E as férias de agosto já haviam começado. Na véspera percebia-se o enorme fluxo de veículos pelas rodovias. Os que moram nas regiões urbanas iam em busca de praias ou campos. O povo da campanha indo para as cidades.

Ao sair do hotel tomei a primeira viela estreita e, após andar, deslumbrada, entre uma infindável mescla de prédios comerciais, trattorias e bancos, deparo-me com a grandiosidade da fenomenal Piazza Cavalli, que é, realmente, o coração da cidade. Lá se encontra o Palácio Gótico, ladeado por dois artísticos monumentos equestres, a Igreja de São Francisco, monumental, e o Palácio dos Mercadores.

Cruzando a praça eu vejo um grande relógio de sol com um calendário perpétuo incrustados na fachada do Palácio do Governador. Ao sair da praça deparo-me com uma rua repleta de lojas elegantíssimas exibindo em suas vitrines roupas, bolsas, calçados e tudo o mais que se pode pensar que possa ser adquirido por quem leva milhares de euros nos bolsos. Um verdadeiro desfile das grandes casas de costura italianas e francesas para encher os olhos.

Seguindo a rota que me fora indicada, deparo-me com uma praça totalmente arborizada, a Piazza del Duomo. Com muitos jardins, muito verde e um convidativo banco em local sombreado. Onde pude ficar bem acomodada tomando um surpreendente sorvete, enquanto apreciava os arredores. Ao lado, a Catedral de Santa Maria Assunta e Palácio Episcopal. No meio, uma coluna, creio que com uns dez metros de altura, tendo em seu topo a imagem de Maria Imaculada.

Eu tinha a impressão de que o que eu mais via por lá eram igrejas. E era verdade. Nos primórdios da cristandade houve uma grande refrega entre romanos e cristãos no vale do Trebbia. Cristãos aprisionados, torturados e condenados à morte são relembrados. O que mais marcou a região foi um centurião romano de nome Antonino que, convertido ao cristianismo, foi lá decapitado, tornando-se o patrono de Piacenza. Na Basílica de Santo Antonino há uma torre octogonal com as relíquias do padroeiro. Torres das demais igrejas espalham-se a perder de vista.
A história local cita intenso derramamento de sangue em torno do Trebbia. Desde os primórdios do cristianismo, depois, nos tempos em que duraram as cruzadas, a invasão pelo exército de Napoleão e, mais recentemente, na tomada da Itália pelas tropas nazistas, bem como a expulsão delas pelos exércitos aliados, no decorrer da Segunda Grande Guerra Mundial.
Muito ainda há a relatar desta minha curta passagem pelas terras onde nasceu meu Nonno Pedro Gobbi.