108 anos de história. A questão que se coloca é: qual história?
Alaércio Bremmer Maia*
“Progresso muitas vezes, é, também, a capacidade de poder preservar.”
Aloísio Magalhães
“Canoinhas: 108 anos de história”, logo veremos por aí, sejam nas festividades de aniversário da cidade sejam nas redes sociais dos mais diversos cidadãos locais. 108 anos de história… a questão que se coloca é: qual história? Tendo em vista de que, tudo aquilo que nos lembra ela e que a torna presente em nossa memória, pouco a pouco passa por um processo de destruição? Exemplos que justificam essa tese é o que não falta: podemos citar a cervejaria canoinhense que a duras custas se mantêm, além de casas e construções históricas que volte e meia estão vindo abaixo, em prol de uma dita “modernização” e “progresso”; como caso mais recente disso, cito a derrubada da antiga casa que pertenceu àquele que fora o primeiro historiador canoinhense, seu Orty Machado.
Diversos seriam os fatores que poderiam ser citados aqui como causadores desse problema, contudo, cito três, que, de uma forma ou de outra, acabam se encontrando e se entrelaçando no mais das vezes: 1) uma especulação imobiliária atroz, que procura locais privilegiados para a instalação de prédios e comércios (que muitas vezes são aqueles que abarcam determinadas construções históricas), 2) Ausência de recursos ou políticas de proteção ao patrimônio histórico e 3) Falta de consciência histórica por parte do governo do município e de parte da população local.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu mais famoso livro, Raízes do Brasil, no capítulo dois, intitulado “trabalho e aventura”, distingue dois tipos ou aspectos de personalidade, que de uma maneira ou de outra acabam constituindo povos e culturas: o aventureiro e o trabalhador. O primeiro tipo se caracterizaria por uma ambição desmedida, por indivíduos que enxergam primeiro os objetivos e benefícios, para depois pensar nos meios e circunstâncias, em suma, o tipo aventureiro é aquele que almeja ganhos e lucros fáceis, não importando muito o que tenha que fazer para conseguir isso. O segundo tipo, o tipo trabalhador, é o contrário de tudo que fora dito do aventureiro: é mais minucioso, organizado, racional, e pensa mais nos meios e circunstâncias para depois pensar nos benefícios e lucros. O autor destaca que os dois tipos se fazem presentes em todas as sociedades, porém, sempre há um que se sobressai mais que o outro; no caso de nossos colonizadores iniciais, os portugueses, o tipo que acabava se sobressaindo era o do aventureiro. Já de início isso nos trouxe consequências, como destaca Sérgio Buarque, como por exemplo, quando o português resolveu explorar a terra do Brasil para plantar cana de açúcar. Essa exploração da terra se deu de maneira brutal e sem nenhum cuidado e trato, afinal, tudo quanto almejavam, era o lucro e o ganho fáceis. Não importava que a terra, a flora e a fauna locais fossem destruídas, o importante era ganhar e lucrar acima de tudo. Esse aspecto aventureiro que Sérgio Buarque de Holanda tão brilhantemente notou, ainda se faz presente em nossas personalidades. No nosso caso em questão, não importa que tudo aquilo que constituiu e constitui nossa história venha a ser derrubado, posto abaixo e que, a única lembrança que tenhamos destas coisas futuramente seja uma mera fotografia, o que importa é lucrar, nem que a consequência desse lucro seja a perda da memória local.
Essa ambição desmedida se fortalece diante das poucas e rasas políticas de proteção ao patrimônio histórico nacionais, estaduais e municipais, e, quando estas ocorrem, por conta de descaso ou desorganização, nós ainda as perdemos, tal como se deu nos últimos dias, quando foi divulgado pelo ministério do turismo, que Canoinhas ficou de fora da rota Caminhos do Contestado por não possuir conselho de turismo ativo, some-se isso a pouca consciência histórica da população, que assiste passiva essa destruição da memória local, e observe a história da cidade sendo consumida pouco a pouco.
Corro o risco de com esse texto parecer saudosista ou até mesmo nostálgico aos olhos mais “progressistas”, contudo, fato é que, a importância da memória e história locais transcendem o mero campo do saudosismo e da nostalgia. Valorizar a história local, assim como aquilo que a constituiu, é um modo de compreender nossa formação, nossas origens, nossos hábitos, tradições e costumes. Valorizar a história local, é um modo pelo qual nós conseguimos nos conectar com gerações anteriores que por este mesmo espaço passaram. Valorizar a história local, enfim, é um modo de nos compreendermos como sujeitos históricos também. A questão que se coloca é: como possibilitar que isso aconteça, quando muitas de nossas principais referências que nos conectam a essa mesma história, como as construções antigas e afins, estão sendo perdidas ou destruídas para dar lugar a algum barracão pré moldado cinza e sem vida?
Deixo esse texto, que não se pretende de nenhuma maneira fatalista, como reflexão. As soluções existem, porém, só se concretizam por meio de trabalho e disposição. É muito bem possível, por exemplo, abrir comércios e negócios e ainda assim preservar o patrimônio histórico (cito como referência próxima, União da Vitória, que indexou seus respectivos comércios nas próprias construções históricas, preservando assim, a arquitetura e a memória), além do mais, uma maior ênfase para a questão do patrimonialismo nas aulas de história, já ajudariam também, a ressaltar a importância disso para a população local. Entretanto, se isso não for pensado e executado a tempo, Canoinhas no futuro, corre o risco de ser uma cidade vazia, sem essência, sem memória, perdida no tempo e no espaço.
*Alaércio Bremmer Maia é acadêmico de filosofia pela Universidade Estadual do Paraná