Não era muito cedo, no dia seguinte, quando nós nos acomodamos no panorâmico ônibus com destino a Pádua
Foi curta, curta demais a nossa passagem por Veneza. Como muita coisa em Veneza eu já tivesse visto em uma viagem há mais de trinta anos, triste não fiquei. Em um dia sequer dá para se vislumbrar, por alto, uma cidade como aquela… E por lá andamos por apenas poucas horas.

Não era muito cedo, no dia seguinte, quando nós nos acomodamos no panorâmico ônibus com destino a Pádua, a terra que consagrou o milagroso Antônio, que era de Lisboa. Uma viagem curta. Pouco mais de trinta quilômetros e paramos em algum ponto ao lado da grande feira que toma vários quarteirões.
Cruzamos muitas vias, deparamo-nos com uma verdadeira procissão em plena manhã de um dia comum. Pessoas de todas as partes do mundo com um pensamento uníssono. Visitar o local onde se encontrava a tumba do miraculoso santo. Sentir a energia que daquele local emana.

Foi num repente que, ao fundo de uma grande praça, surge a mística Basílica. E, em reverência, quase em silêncio, a multidão a ela se dirige. Sente-se algo a inundar nossa mente, nosso corpo, nosso espírito quando nela se adentra.
Desde que eu me despojara do agasalho com o qual saíra de casa, minha vestimenta resumia-se a camisetas, tipo regata e bermudas. Nem me dei conta de que poderíamos entrar em algum santo local onde estes trajes não seriam permitidos. Não sei se motivada pelo intenso temporal que nos encontrou em Veneza, ou se por alguma intuição que veio lá do fundo adormecido nas memórias ancestrais, naquela manhã eu resolvera estrear algo diferente. Trajada com camiseta, sim, mas com mangas e com uma longa calça eu estava. Livrei-me de ser obrigada a adquirir, por um euro uma camisola ou avental de TNT, de cor azul escura, igual aos que cobriam meus pacientes nas sessões de acupuntura. E havia mantas, também, de igual tecido e cor para quem estive com os ombros desnudos.
Segui o ritual. Circunspecta fiz a genuflexão. Em silêncio sente-me em um banco em plena nave escura. O que eu aprendera em minha tenra infância. Poucas luminárias de fraca intensidade encontravam-se acesas. O sol da manhã refletia-se pelas paredes atravessando claraboias, disseminando-se nas mais variadas cores através de uma floresta de esplêndidos vitrais. Sempre, quase que em surdina, um som de órgão a disseminar envolventes melodias. Seriam de Bach, de Albinoni, de Vivaldi?

Percorri a Basílica quase que por inteira. Admirei os quadros da Via Sacra. Os afrescos. As imagens. E eis que me encontro junto à tumba do incrível homem que tanto bem fez para a humanidade. As pessoas colocavam as mãos, e às vezes, até a cabeça de encontro à laje fria que a envolve. Em constrição e devoção total. Sem um sussurro sequer para quebrar aquele místico silêncio.
Jamais conseguirei explicar o frisson que de mim tomou conta quando as minhas mãos naquela parede eu coloquei. E foi então que a imagem dos meus que já se foram em minha mente apareceu. E do fundo de meu ser pedi ao místico homem de Pádua que envolvesse todos os meus que por esta terra ainda perambulam com suas dores e seus problemas. E a visão, em minha imaginação, claro, de que gotas de um santo colírio eram depositadas em nossos olhos. E então as minhas lágrimas lá ficaram molhando aquele solo abençoado. As minhas lágrimas que vertiam pela emoção incontida. E, na minha imaginação, os nossos olhos viam as coisas mais maravilhosas que em algum dia possa existir em algum místico local de nosso universo. Obrigada, Antônio de Pádua!
Parecia que eu estava levitando ao deixar aquele espaço e a flanar fiquei pelo átrio principal, uma vez mais indo em busca do encantado jardim que ladeado por outras construções ficava. Era um jardim de coloridas rosas. Dele assim eu me lembrava. E foi assim que o encontrei.
Não houve tempo para conhecer o que a grande feira tinha para oferecer. Consta que de pinheiros e ciprestes em vasos, a uma gama infinda de tecidos e máquinas de todos os tipos lá são comercializados.
Tomamos então outra rodovia em sentido sul em sentido a San Marino. Um início que nos contava das grandes plantações de cereais, de pequenos sítios de criação de gado e de aves. Um longo trecho a percorrer até chegarmos ao destino de nosso almoço. Rodamos por duzentos e cinquenta quilômetros. Na tentativa de tornar menos monótona a viagem um filme foi exibido. O guia, (a este tempo a nossa guia da sombrinha colorida já tomara outro rumo) falando amenidades para entreter o povo que não cochilava.

Passamos ao lado de Bolonha. E claro que o famoso molho foi mencionado. Bolonha está no divisor dos Apeninos. Foi ali que começamos a vislumbrar a grande coluna dorsal que cruza a península, estendendo-se até o sul. Montanhas cobertas de vegetação sempre verde. Notavam-se cumes e escarpas, grotões e vales ao fundo.
À medida que nos aproximávamos de San Marino, deixávamos as planuras.

San Marino é um país independente. Não faz parte da República Italiana. Ficou conhecido, pelo menos entre nós, por sediar, por algum tempo, as corridas de Fórmula Um. Que não eram realizadas em seu território. Porque ele é todo montanhoso. Para isto necessário era um local plano. E a vizinha cidade de Imola sediou, por décadas, creio, o famoso grande prêmio. Grande prêmio de Imola que nos deixou uma grande tristeza. Grande Prêmio de Fórmula Um de Ímola. Onde Airton Senna correu pela última vez. Onde Airton Senna do mundo se despediu.
Passamos ao largo de Ímola. Melhor não visitar aquele autódromo de tristes lembranças. Na memória a curva de Tamburello e o fatídico dia primeiro de maio de 1994.

Logo as curvas eram mais íngremes. O ônibus costeava paredões de um lado e penhascos de outros. Em uma enorme esplanada, num dos pontos mais altos, um amplo estacionamento, onde os ônibus devem permanecer.
E a pé mais subidas pela frente. O nosso guia avisara-nos que as compras ali seriam bem em conta. Não se pagava imposto na Sereníssima República Democrática de San Marino, a mais antiga democracia da história da humanidade.
Nossa primeira parada. Um restaurante, claro. Onde uma Salada Caprese com pães crocantes imersos em puro e fino óleo de oliva foram suficientes para restaurar as forças e a glicemia. E mesmo naquela altitude o calor do verão continuava intenso. Não era hora para um vinho. Era hora de cerveja gelada. De pressão.
Para se conhecer o recanto, onde se refugiou Marino e seus seguidores lá nos idos do segundo século depois de Cristo, necessário era ter pernas, músculos e fôlego. Porque para o cimo somente a pé.
Enquanto alguns mais ousados fizeram a escalada, eu fui circulando em torno das partes menos acidentadas. Defrontei-me então com um museu. O Museu da Tortura. A fim de conhecê-lo uma quase vertical escadaria eu deveria escalar. Não sei se foi o nome ou a preocupação em ascender aqueles degraus. Demorei-me a decidir se o visitaria, A curiosidade venceu. Várias salas com o que de pior, em épocas medievas —e até em eras anteriores—poderia o homem ter inventado para torturar o homem. Instrumentos apenas vistos por mim em filmes. Não consegui lá permanecer por mais de 10 minutos, e em busca de amenidades eu andei. Perto, bem perto de onde deveria encontrar meus amigos a fim de tomarmos nosso ônibus, encontrei a loja dos meus sonhos. Uma perfumaria. Onde eu poderia repor o estoque do perfume que me acompanha pela vida, o que já chamo de meu Miss Dior.

Mais uma amiga na história, a moça que era a dona da loja de perfumes. Enquanto esperava pela hora em que reencetaríamos a jornada ficamos a conversar. Ela pensava que eu estava em férias na vizinha praia de Rimini, às margens do Mar Adriático. Pasma ficou quando eu falei que era brasileira. Foi então que mais um diploma de Língua Italiana eu recebi.