Primeiramente destaca-se nestas linhas iniciais, que oportuno é o resgate das modificações sociais que ocorreram em torno das mulheres ao longo da história, neste mês que transcorre à sua homenagem. Cada autor ou escritor, a seu modo e, à luz de seu tempo, apresenta em linguagem cinematográfica ou bibliográfica, sua referência aos dramas e conquistas das mulheres ao longo dos tempos. Desse modo, como são muitas as vertentes em torno de um mesmo objeto, isso implica em numa observação atenta e cautelosa do leitor, no intuito de perceber apenas um viés das modificações que inserem o púbico feminino, resguardando, portanto outras teorias e, perspectivas analíticas.
O filme “Mulheres Perfeitas” que estreou em 2004, foi na realidade uma adaptação de “The Stepford Wives”(Mulheres de Stepford), lançado em 1975, o qual fora baseado no livro de Ira Levin (1929-2007), escritor dramaturgo estadunidense, mais conhecido pela obra: “Rosemary’s Baby” (o Bebe de Rosemary, também adaptado ao cinema na década de 60 por Roman Polanski).
Há que se ter presente, portanto, que em meados dos anos 1970, o movimento feminista nos Estados Unidos estava em seu auge. Ira Levin, inspirou-se em fatos ocorridos a época e, por isso, capta o drama e os preconceitos vivenciados pelas mulheres norte-americanas, reportando-os à escrita de um romance. O filme que foi adaptado deste livro tem como objetivo central fazer uma crítica feminista à sociedade machista norte americana, evidenciando o preconceito masculino frente às mulheres, que lutavam por liberdades de gênero em relação às estruturas patriarcais daquela sociedade.
Nesse sentido, o filme se apresenta desprovido de qualquer diálogo marcante, ou de cenas empolgantes, de fotografia ou trilha sonora de maior destaque. Num cenário geral anuncia de modo irônico e, numa legítima “água com açúcar”, característico de filmes da sessão da tarde, duas caricaturas antagônicas dos possíveis papéis a serem desempenhados pelas mulheres. De um lado, esta a mulher atraente, independente, inteligente, executiva bem sucedida, profissional competente e realizada; do outro, esta aquela perfeita dona de casa, legítima rainha do lar, que faz da sua casa seu palacete, é excelente cozinheira e zela apenas e, exclusivamente pelo lar e pelos os cuidados com filhos e marido.
O filme de modo sutil, já nos primeiros minutos, exibe mulheres completamente realizadas e felizes em suas cozinhas modernas e bem equipadas. Incitadas pela economia e pela publicidade, assumem passivamente o fato e a condição não de serem apenas “donas de casa”. Mas, paradoxalmente através do reconhecimento social, serem acima de tudo: “donas de casa modernas”, capazes de manipular aparelhos eletroeletrônicos complexos, bem como produtos de limpeza cada vez mais especializados. Ou seja, falaciosamente apresenta-se a sociedade e, sobretudo, às mulheres o argumento de que dirigir uma casa é o mesmo que dirigir uma empresa!
Em linhas gerais, o longa centrado no personagem principal (Joanna Eberhart representado por Nicole Kidman) muda-se com o marido e seus dois filhos para a tranqüila Stepford, localizada em Connecticut, após ter sido despedida de uma grande emissora de TV na qual coordenava programas televisivos. Ao chegar na cidade aos poucos a personagem deduz que há algo de “estranho” em Stepford, tendo em vista a total ausência de criminalidade, pobreza e assaltos. Mas, para, além disso, o comportamento feminino chamava atenção, uma vez que “fugia da normalidade”. Ou seja, não é sempre que se vê mulheres “constantemente felizes, maquiadas, elegantes, tendo como propósito de vida diuturnamente apenas o cuidado com os filhos, com a casa e viver para a total e repleta satisfação de seus maridos”.
Apesar de o filme apresentar-se no gênero comédia sua proposta reflexiva vai muito além disso. A questão à ser reconhecida é que por anos os papeis que são interpretados agora numa versão cinematográfica, foram de fato desempenhadas por muitas mulheres, além de permanecer no subconsciente de muitas até os dias atuais, o que justifica o fato de muitas mulheres ainda desejarem ser propriedades de seus parceiros, e/ou de alguém, gastar tempo e recursos com excessivos com cuidados corporais, submetendo-se a dietas e a tratamentos estéticos dolorosos, com o intuito de se apresentarem como objetos de consumo desejáveis à havidos consumidores da estética corporal, desprovida da beleza conceitual.
A trama leva o título: “Mulheres Perfeitas”, pois conclui que mulheres perfeitas não existem (e não há nenhuma novidade nisso), razão pela qual devem ser fabricadas. Frise-se: “Mulheres Perfeitas” para o conjunto da obra, são aquelas circunscritas apenas ao âmbito da casa. Ou seja, vaidosas ao extremo, mas dedicadas para atividades eminentemente restritas ao espaço doméstico. Aqui é preciso ter presente que desde os gregos antigos sabemos que a casa é o espaço da vida biológica, do reino das necessidades, da efemeridade e do sem sentido de vida biológica. Este discurso (de mulheres vaidosas e dedicadas exclusivamente ao espaço doméstico), talvez em certa medida superado e vencido, permite refletir sobre esse critério de “perfeição”. Seriam de fato as mulheres perfeitas sinônimo de uma beleza estética exacerbada? Plastificadas? Artificiais? Desprovidas de sentimentos e desequilíbrios hormonais? Seria a perfeição o equilíbrio através do reconhecimento de papéis designados e bem definidos, onde homens se limitam no espaço extra casa e mulheres intra casa? Em que medida em nossa sociedade ainda subjaz no inconsciente social o fato da mulher continuar ocupando no imaginário social uma condição de inferioridade na divisão social do trabalho e dos papéis sociais?
Para melhor apreensão do filme descrevamos o dia-a-dia de Stepford: Homens jogam golfe, têm seu clube fechado, onde se reúnem todos os dias e são felizes porque suas mulheres são basicamente: loiras, lindas, elegantes e, principalmente, obedientes, passivas, submissas, subservientes e totalmente dependentes deles. Às esposas, por sua vez se distraem com superficialidades banais, com ginásticas que simulam atividades domésticas e, é claro em deixar a casa brilhando e cheia de comida para a família!
O mérito do filme reside na demonstração de um papel falacioso, mas, anunciado a muitas com louvores, e que de certo modo, resgata o objeto da obra literária: “A mística feminina”, publicado em 1963 pela escritora norte americana Betty Friedman (1921-2006), e que infelizmente a décadas não é mais publicado.
Nesse sentido, relata Friedman, que em 1950, muitas mulheres que freqüentavam as universidades não o faziam com a intenção de qualificar ou diplomar-se, mas sim de contrair matrimônio. Neste período, cerca de 60% das mulheres estudantes abandonava a faculdade, parte delas porque temiam que o excesso de cultura fosse um obstáculo ao casamento, e por isso, não poderiam assumir com plenitude os papéis civilizatoriamente estabelecidos, como o de mãe e esposa, para o qual tanto almejavam e foram historicamente domesticadas.
A dona de casa americana, libertada pela ciência das dores do parto, das doenças de suas avós e das tarefas domésticas, era sadia, bonita, educada e dedicava-se exclusivamente ao marido, aos filhos e ao lar, encontrando assim sua verdadeira realização feminina. Para a autora, este é o verdadeiro mistério: por que tantas americanas, com capacidade e educação para criar e fazer descobertas, voltaram-se ao lar em busca de “algo mais” nas tarefas caseiras e na criação dos filhos? A mesma pergunta é válida para nossos dias, sob outras perspectivas societárias: Porque tantas mulheres aceitam ser objeto de desejo potencializado pela lógica da sociedade de consumo, assumido tacitamente a superficialidade de suas vidas?
Por mais decepcionante que seja para o leitor tomar conhecimento sobre o final de um filme, sem ter assistido o mesmo, infelizmente nesse caso será necessário abordá-lo. Ou seja, o que justificou os movimentos feministas na busca de uma inserção na dinâmica social para algo além do espaço doméstico, no filme ocorre de modo contrário.
Num primeiro momento, ao longo do filme o que parece ser um desejo masculinizado, que advém de um comportamento machista dos homens em relação a designação dos papéis desempenhados pelas mulheres, é na realidade fruto de uma mente criativa e distorcida feminina. Isto é, Claire Wellington, interpretada por Glenn Close, é uma mulher casada e que outrora fora uma cientista bem sucedida e realizada do ponto de vista profissional. Contudo, percebeu que seu desempenho extra muros, refletiu no âmbito doméstico, quando toda sua atenção e dedicação que seu trabalho exigia era feito em detrimento para seu marido. O que julgou ter contribuído para a traição do mesmo.
Em outras palavras, a personagem questiona até que ponto vale o sucesso profissional da mulher auferido fora do ambiente doméstico, e se isso pode por em risco a dinâmica e a estrutura familiar? Desse modo, inconformada com a incompatibilidade dos papéis sociais ofertados as mulheres, a personagem propõem um resgate da cultura patriarcal, na qual mulheres altamente qualificadas e instruídas abdicam de qualquer outra atividade que não esteja circunscrito ao ambiente doméstico e assumem de bom grado papéis renegados por elas próprias durante anos.
Talvez uma das considerações possíveis que o longa apresente, consiste no fato de que para as mulheres contemporâneas abdicarem de suas conquistas para viverem numa eterna condição passiva, somente será possível com o aporte de nanotecnologias! Mas, para além da conclusão apresentada no filme, talvez se possa colocar em jogo o fato determinante das sociedades contemporâneas em que estamos inseridos, de que para participar das infinitas ofertas de oportunidades de aquisição e consumo de objetos e seres humanos, ou seja, de consumir e ser consumido é preciso assumir um modo de vida em certa medida superficial, que deseja e anseia por ser consumido, ou mesmo submeter-se passivamente a tarefas e condições predeterminadas na divisão social do trabalho.
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FICHA TÉCNICA: Lançamento 30 de julho de 2004 (1h55min) Direção: Frank Oz; Gênero: Comédia, Fantasia, Ficção científica; Nacionalidade: EUA; Elenco: Nicole Kidman, Matthew Broderick, Bette Midler, Glenn Close, Christopher Walken. Classificação: 12 anos.
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Sandro Bazzanella. Professor de Filosofia; Coordenador do Curso de Ciências Sociais; Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq; Coordenador do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – Universidade do Contestado. ciê[email protected]
Danielly Borguezan. Advogada, Professora de Direito; Mestranda do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq; Membro do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – Universidade do Contestado e bolsista do Programa do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES. [email protected]