Em “Retalhos perdidos no Tempo” coloquei muitas linhas já vislumbradas por vocês nestas colunas semanais
Alço os meus olhos para os longes de um passado em que, menina ainda, no auge de meus oito anos, escrevia algumas poucas linhas sobre algo que a professora nos instigava descrever. A professora do meu segundo ano primário da Escola Elementar de minha vila. Escola que ocupava o prédio onde funcionara, por mais de quatro décadas a Escola Alemã. Um prédio no saudoso e característico estilo Enxaimel.
A professora era a dona Aline, minha irmã mais velha. Sobre o que escreveríamos? Redação não era o nome do que deveríamos colocar no papel. Estes temas eram chamados de “Descrição” ou “Composição”. Algumas poucas linhas rabiscadas. Creio que eu já contava do trem que pela frente do restaurante passava. Ou do milho que jogávamos para as aves do galinheiro. Ou como tinham decorrido as férias. O que durante aquele período fizemos. Por onde andamos. Porque cada criança conta das coisas do pequeno mundo que as envolve. E aprendemos a redigir cartas também.
Já no curso ginasial —todo ele feito no Instituto de Educação “Sagrado Coração de Jesus”, que todo mundo conhecia apenas pelo nome de Colégio—tínhamos de as redações. E então eu me empolgava em narrar histórias passadas em savanas e desertos. Fruto dos livros que no internato, aos domingos, eu lia. Viajava nas asas de minha imaginação e cavalguei em negros garanhões árabes por toda a Ásia Menor e pelas campinas onde morava Winnetoo, o índio que lia pegadas no escuro. Só mudei o tema quando Irmã Maria Maristella Banach, nossa professora de Língua Portuguesa, achou que eu estaria sendo muito repetitiva. Para outros polos mudei minhas viagens astrais.
Ao relembrar tudo isto eu apenas fico a pensar o que me deu na telha de seguir um rumo totalmente diverso em minha vida. Entrar na área médica. Em vez de seguir as lides das letras ou de algo afim…
Sempre atrás de algo para escrever eu andei. Foi assim que me apresentei na redação do Jornal “O Dia” de Curitiba, quando cursava o quinto ano do curso médico. Comecei tecendo comentários sobre discos e em breve eu já tinha uma página inteira contando das coisas sociais, da vida estudantil, das peças de teatro e dos filmes que por lá passavam. Até que me formei. Desde então mergulhei em tratados científicos. Porque assim eu me exigia. Para estar atenta a um mundo médico em franca evolução.
Eis que chegou o tempo em que das lides médicas, pouco a pouco, eu me desliguei. Não por razões de estafa, não por desilusão, mas por acreditar que eu já havia feito o meu milésimo gol. Era chegada a hora em que deveria me conformar com as cartilagens já desgastadas, com a deficiente visão em franca evolução. Mas não poderia ficar inerte em uma poltrona, vendo novelas, vendo o mundo passar através das vidraças de minhas janelas.
Aconteceu, então, num repente, que um corisco passou por mim. Vejo ainda a imagem de meu amigo Edinei Wassoaski, num casual encontro, convidando-me para escrever uma coluna neste JMais. Foi a fagulha para o primeiro livro nascer.
Agora estou com o número 4 em minhas mãos. Em “Retalhos perdidos no Tempo” coloquei muitas linhas já vislumbradas por vocês nestas colunas semanais. Um vislumbre dele eu coloco hoje aqui. O que nele escrevi, à guisa de apresentação. Ei-la: Ao transpor estes caminhos todos por onde passei, fui juntando esboços, juntando retalhos, juntando gravetos. Coisas poucas de pessoas que suas lástimas, seus desesperos, seus devaneios, seus encantos, seus desencantos, foram desabafando ao meu lado, em meus ombros, em meu colo…
Retalhos que os fios da imaginação foram entrelaçando, moldando, formando colchas que eu chamo crônicas, que eu chamo contos.
Contos e crônicas que de semana a semana teceram as páginas deste livro.
Nem sempre um ponto de partida real, nem sempre uma nítida imagem à minha frente.
O simples acorde de um piano, o canto de um pássaro, uma visão do mar, estimulam o murmúrio dos neurônios que começam o seu alvoroço e as palavras surgem formando frases, cerzindo histórias.
Doutras vezes, são memórias esmaecidas e que pela saudade retornam para contar de passagens sobre um tempo que foi bom e que foi belo, o tempo em que os comboios ferroviários eram os nossos caminhos, os nossos trilhos, a linha que nos ligava a outros páramos.
Pedaços de saudade afloram sempre à mente de quem muito passou pela vida e que muito viveu. Pedaços de saudades espalhados em páginas cobertas de lágrimas.
Mas houve também o tempo do horror, o tempo do terror que não poderia ser deixado apenas escondido dentro das células cinzentas do cérebro. Preciso é contar dos tempos em que minha família ao ostracismo foi relegada, ao tempo de agruras por que passamos, ao tempo do escuro dos porões da ditadura. Ao tempo em que persistir no trabalho era o tempo de resistir para viver.
São retalhos assim, pedaços assim, gravetos assim que juntando eu fui para tecer estes escritos meus em forma de crônicas, em forma de contos que eu agora ofereço a vocês, leitores meus.
E entre estes retalhos as lembranças dos meus pais e de meus irmãos, de sua luta e das agruras e atrocidades pelas quais passaram.
Meu pai Adolpho, como ferroviário exerceu as mais variadas funções na Rede Ferroviária, iniciando como praticante de telegrafista na cidade da Lapa, sua terra natal, quando adolescente ainda e culminando como Fiscal de Estações, cargo que exerceu até a sua aposentadoria.
Minha mãe, de nome Petronilla Rosina que todos conheceram como dona Nena, incentivou-nos a todos nós, seus filhos, a estudar e a primar pela honestidade, fraternidade e caridade. Foi exemplo de abnegação e carinho, de retidão e justiça e de amor incondicional acima de tudo. E sofreu conosco todas as vicissitudes pelas quais passamos.
Aline, passou e compartilhou conosco infindas agruras que suportou junto com toda a família nos tristes anos cinzentos que tanto nos atormentaram.
Avany calada sofreu todas as perseguições e injustiças impostas pela ditadura, sem jamais esmorecer.
Aldo em seu árduo mister como advogado do Sindicado dos Mineiros de Carvão do sul do estado de Santa Catarina, usando como arma apenas sua vibrante pena e sua voz, tentou amenizar a vida de um povo que em torno e nos porões das minas vivia. E um alto preço por isto pagou.
Adolpho, o Fito, foi enviado, como castigo, para os mais distantes rincões, numa vida solitária, estudando o solo e os minérios com o intuito de jazidas de petróleo encontrar.
Amaury, o Maurinho, meu irmão caçula. Aspirante ainda passou dias na serra da Graciosa em busca do que sobrara de um avião e das pessoas que nele viajavam. O fatal acidente em que perderam a vida ilustres personagens de nossa história, entre eles Nereu Ramos. Passagens de sua vida como bombeiro atuante inspiraram-me nos escritos de trechos desta obra. Incontáveis angústias passou pelo simples fato de pertencer à família de alguém que só quis uma vida melhor para os que viviam e morriam nos porões das minas de carvão.
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Edinei escreveu o prefácio de “O Meu Lugar”, o meu primeiro livro. Convidei-o para redigir o do atual. Ei-lo:
PREFÁCIO
A primeira atitude que tomei ao receber o convite para escrever o prefácio deste livro foi resgatar o que escrevi para a estreia de Adair Dittrich na literatura.
Tive o privilégio de escrever o prefácio de seu primeiro livro, O Meu Lugar, série de textos escritos para o portal JMais. Volto a lembrar do quão saborosos são os textos da autora nessa obra que traz novas crônicas e contos escritos por Adair para o site.
Com seu estilo marcado pela escrita elegante, entremeada pelo lúdico, com temperos de saudosismo, mais uma vez Adair relembra o seu lugar, a pequena vila de Marcílio Dias, no interior de Canoinhas.
Mas entrega-nos muito mais. Histórias de mulheres aparentemente frágeis, mas donas de uma força interna admirável como Clara, a sua própria mãe, a estigmatizada Zara, a enigmática primeira dama, entre tantas outras, cada qual com algumas pitadas da personalidade da própria autora.
Histórias tensas e impressionantes como quando perambulou por quartéis, aflita e desesperada por notícias do irmão, preso sob acusação de subversão pela ditadura militar.
A homenagem ao amigo Haroldo Ferreira e tantas outras boas histórias que misturam o onírico e o real, uma das especialidades de Adair.
Além de trazer uma obra consistente e gostosa de ler, Retalhos perdidos no Tempo estreia o selo JMais Publicações, criado para dar vazão à opinião e capacidade literária de colunistas e colaboradores do site.
Não poderíamos estrear de maneira mais ilustre, dando espaço para o pensamento de Adair, tão rico e diverso que só nos faz admirar e aplaudir. Boa leitura!
Edinei Wassoaski
jornalista, editor do site jmais.com.br
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Algumas tristes passagens deste meu quarto livro relembram o que nossa família passou durante os tenebrosos anos cinzentos. Karin Aline, minha sobrinha era então um bebê. Ninguém melhor que ela para escrever o texto inserido na contracapa. Ei-lo:
TEXTO DA CONTRACAPA DE “RETALHOS PERDIDO NO TEMPO”
Em “Retalhos perdidos no Tempo” Adair Dittrich presenteia-nos com mais uma obra. Juntando seus retalhos com o fio da imaginação, moldou suas colchas. Retalhos escritos adormecidos, esquecidos no fundo das gavetas de sua vida, fragmentos de suas vivências, de suas memórias concretizando sentimentos, que resultaram em suas belas crônicas.
Adair dedica suas crônicas a sua amada família. A seu pai, o ferroviário Adolpho Dittrich e a sua mãe, carinhosamente chamada de dona Nena. Aos seus irmãos Aline, Avani, Aldo, Adolpho e Amauri e, através da querida amiga Clara Finta Kersten, a todos que passaram por sua vida.
A autora encanta-nos com seu estilo único de escrever. Com a maestria das letras, minuciosa descrição e sua contundente opinião, faz-nos mergulhar em suas lembranças, desejos, dramas, medos, crenças, amores e uma coragem gigante para enfrentar todos os momentos vividos.
Faz-nos voltar no tempo, com seu característico detalhamento minucioso, ao descrever “o mundo da estação ferroviária por ela vivido”. Memórias de sua infância, do tempo da faculdade, no exercício da medicina, dos desabafos em seus ombros.
A autora surpreende-nos ao compartilhar, com maestria, suas lembranças de momentos de angústia, medos, preconceito e perseguições, sofridos e vividos… A dor de um irmão e da família, vítimas dos anos cinzentos… negros.
Como é prazeroso ler “Retalhos perdidos no Tempo”, de Adair Dittrich, que ao som de músicas orquestradas traça sua sinfonia de letras em folhas de papel, em meio a labaredas e flocos de neve dançantes.
“Mas sobrevivemos. Porque resistir é preciso.
Sobrevivemos… Porque resistir continua sendo preciso.”
Karin Aline Gallotti Varela Castanha Dittrich
Advogada.
Professora com licenciatura em Matemática e Biologia.