Ela encontrou alguém com quem o ato do amor era um ato de amor e não uma obrigação matrimonial
Não, não é a história de Eduardo VIII, rei do Reino Unido, Príncipe de Gales, depois Duque de Windsor, que renunciou ao trono por um amor. O amor por Wally Simpson.
Esta é uma história de pessoas simples, iguais a tantos e a tantas, que ao nosso lado encontramos todos os dias.
Ela morava em uma cidade grande, lá para muito além das montanhas encantadas, que se situam quase no centro de nosso imenso país. Ele, nas praias morenas, carregadas de malícia, onde, em cada entardecer, via um mar, todo em ouro vestido, a engolir o sol em suas turbulentas águas.
Ela era de uma família simples e culta. Com esforço concluiu um curso superior e batalhava diariamente para escalar posições melhores e assim poder alçar os voos com que tanto sonhava.
Ele nem sabia se tivera uma vida difícil. Porque a mãe tudo fazia por ele. Porque eram só os dois. Nunca se soube se era filho de mãe solteira ou se ela enviuvara quando ele ainda era um bebê.
Ela era linda, muito alta, deslumbrante e tinha um corpo bronzeado, lapidado nas piscinas de sua terra natal. Ele era alguém comum, de estatura comum, da cor natural de quem muitas horas na vida passou pelas pranchas de surfe, jogando peteca nas areias da metropolitana cidade onde nascera.
Ela fora escolhida por seu clube, como candidata a Miss de seu estado. Não teve concorrente à altura e logo recebia a coroa em sua cabeça e o cetro em suas mãos.
Ele concluiu o curso superior e conseguiu fazer uma profícua especialização justamente na terra da moça linda e de corpo escultural e que recentemente fora escolhida como a rainha máxima da beleza de seu estado.
Quando viu as fotos dela pelas revistas e jornais ficou embasbacado. Fez o impossível para ser admitido no clube que ela frequentava. A princípio ficava ali tomando um refrigerante, sempre em uma mesa perto dela, em torno da grande piscina. Mal ela dava um mergulho, lançava-se ele para dentro da água também.
Ela jamais estava sozinha. Sempre rodeada de amigos e admiradores. Sempre alguém a entrevistá-la.
—Estaria ela comprometida? Teria algum amor que não aparece aqui? —pensava ele.
Não poderia frequentar o clube em todos os domingos. Pois, entre seus deveres no curso de especialização, estavam as escalas de plantão que devia cumprir em fins de semana também.
Já no segundo ano em que por lá se encontrava, conseguiu chegar para mais perto dela. O que ele não tinha de presença física, tinha em presença intelectual. Muito culto, falava sobre vários assuntos ao mesmo tempo, com as pessoas mais variadas que na roda estivessem.
E assim começaram a ir juntos ao cinema, às confeitarias, aos passeios para as cascatas dos arredores da cidade. Noivaram. Casaram.
Ela, Lia que também Maria era. Ele, Caio Augusto.
Ao término de seu curso de especialização, continuou no seu local de treinamento, por mais algum tempo. Enquanto isto procurava saber se havia alguma cidade do interior deste imenso Brasil que precisasse de um especialista na arte que ele, tão duramente, e por tão longo tempo se dedicara.
Encontrou a cidade que seria a cidade dos sonhos deles. Estabeleceu-se numa sala em um local para onde tudo confluía. E os pacientes, ávidos por alguém que lhes indicasse o caminho certo para um enxergar melhor, foram aflorando. Cirurgias foi realizando. Colaborou nas necessidades que o hospital, embora já antigo e tradicional, necessitava para enfrentar o futuro.
Era um tempo em que poucos médicos labutavam na cidade. E estes poucos formavam uma verdadeira confraria. Reuniam-se em cada fim de semana para um churrasco, um jantar amigo na casa de um deles. Comemoravam juntos os aniversários, as entradas de um ano novo. Inventavam reuniões acadêmicas, científicas, trazendo sempre das capitais vizinhas um mestre para proferir palestras. E tudo findava depois em um jantar na casa de algum deles.
E ela sempre junto, a dar ideias, colaborando na decoração, no cardápio das reuniões. Era um tempo em que se percebia que ela era feliz.
Lia Maria não encontrou espaço para exercer a sua profissão na pequena cidade. De início, colaborava com Caio no consultório. Um dia os céus lhes brindaram com a vinda de um novo ser. Os cuidados com a gravidez fizeram-na permanecer mais tempo em casa.
Nasceu o filho. Lindo, como o são todos os filhos. Saudável e risonho. E enquanto Caio trabalhava, ficava ela a dedicar toda a sua devoção ao filhinho, ao lar e a ele.
Mas uma grande amiga dela notou, depois de algum tempo, que ela andava triste. Que não mais participava das reuniões do grupo de amigos.
Naquele tempo não havia, ainda, naquela cidade, cursos que iniciassem as pessoas para ministrar aulas. Nem para o curso ginasial, que dirá para o ensino médio. E faltavam professores. Foi assim que ela começou a dar algumas aulas, mesmo não sendo graduada nas artes do magistério.
Mas algo ainda continuava a pesar dentro dela. Algo que ela não conseguia extravasar.
Num dia de forte temporal, com as ruas da cidade levando em seu bojo um caudal de águas turvas ela se encontra com a amiga que estava a sair de dentro do prédio dos correios. Perguntou se a amiga teria algum tempo para falar com ela.
Entraram ambas no carrinho esporte da amiga e, debaixo daquela chuva torrencial, que escorria pelo para-brisa, ela foi desabafando.
Talvez as melodias, que no toca-fitas enchiam o pequeno espaço, tivessem ajudado para que as palavras fluíssem, na mesma intensidade com que a água, em borbotões, escorria dos céus.
E Lia Maria começou a dizer que não aguentava mais sentir seu marido perto dela. Depois, lentamente, em êxtase, e com lágrimas nos olhos, contou que estava apaixonada por outro homem. Que o conhecera no colégio onde ministrava algumas aulas semanais.
A amiga, a princípio quieta, apenas a ouvia. E ela continuou a falar de suas agruras. Que o marido, por quem, no início, tivera uma grande adoração, transformou-se num ser insuportável. Coisas de homem mimado, para quem a mãe, durante toda uma vida, fizera todas as vontades. Em casa não movia uma palha. Era o rei, o superior, o dono. Ela tinha que estar linda, bela e perfumada à espera dele para o almoço e o jantar, na hora certa. Tinha que lhe preparar o prato. Colocar o guardanapo em seu peito.
Não apenas de manhã, mas após cada refeição, a pasta de dentes deveria já estar colocada na escova, no instante em que ele entrasse no banheiro. Que a roupa que ele iria vestir, fosse para o trabalho, fosse para alguma reunião social, deveria estar arrumadinha, sobre a cama, na ordem correta para ele se vestir.
E assim mais detalhes sobre toalhas de banho, sobre lençóis e cobertas, sobre levar o carro para lavar e para a oficina. Tinha que prestar contas diárias sobre os gastos domésticos.
E havia encontrado alguém que a entendia. Alguém que nada lhe cobrava. Alguém com quem ela se sentia feliz. Alguém com quem o ato do amor era um ato de amor e não uma obrigação matrimonial.
Finalmente, a amiga falou. Disse a ela que a entendia. Que admirava a coragem dela de ter alguém, fora do casamento, em uma cidade pequena. Mas disse-lhe também, que para ela, amiga, não estava certo continuar vivendo esta vida dupla. Disse-lhe palavras lembradas dos Evangelhos. Disse-lhe que não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. E que estas palavras cabem no amor também.
A Lia Maria, quando lhe perguntou o que deveria fazer, a amiga apenas lhe respondeu:
—Fique com quem você ama E seja muito feliz.
Deve ter sido o impulso que faltava para Lia Maria levantar âncoras. Não sei se foi no dia seguinte ou se se passaram alguns dias depois deste desabafo em plena rua, na frente dos correios, sob uma chuva torrencial, que Lia Maria arrumou sua trouxa, deixou de lado a bela mansão que junto com seu marido havia construído e partiu para longe com o amor que encontrou na vida.
E pelo que soube, vivem felizes até hoje.