Os homens e seus muros

Quanto mais altos, mais segurança há, pensam alguns

 

André Gaulke*

 

 

Há quem goste muito de muros. Protegem e promovem privacidade. Quanto mais altos, mais segurança há, pensam alguns. No entanto, estatísticas não corroboram com esse pensamento. Tais estatísticas apontam que há um percentual maior de crimes que ocorrem em ambientes murados do que sem muros. Isso acontece porque muros não dão privacidade apenas para os moradores, mas para os criminosos também. Uma pesquisa feita com a Polícia Militar do Paraná ouviu vários detentos e 71% afirmaram preferir assaltar casas com muros. Ou seja, existe essa contradição nos muros: são feitos para proteger, mas isolam quem está dentro e despertam o interesse de quem está de fora.

 

 

 

Muros são defesas arcaicas. Antes ou junto deles havia as valas, paliçadas e, com o passar do tempo, especialmente com a difusão da alvenaria, os muros foram tomando formas mais imponentes, buscando sempre serem intransponíveis. A ideia é antiga, pois antiga é a contenda humana. O propósito era proteger a vila, castelo ou cidade contra possíveis e frequentes invasores. É uma defesa contra outros povos ou facções. É propositalmente deixar de fora aqueles que não são seus. Por isso, tão logo a reflexão sobre diferenças, intolerância e exclusão se dá em quem quer que seja, os muros também passam a servir de metáfora.

 

 

 

 

Com a impulsão da globalização a partir da década de 1980, houve uma espantosa aproximação de culturas distintas que proporcionou integração entre sociedades em diversas áreas da estrutura civil. Entretanto, esta integração é acometida por constantes ataques promovidos por aqueles que se veem muito próximos do diferente, do desconhecido e que antes estava distante em conceito. Têm medo do novo, da heterogeneidade que se aproxima. E por isso estes pretendem barrar a aproximação para isolar a si mesmos ou o seu grupo. Barrar é construir barreiras, fomentar muros invisíveis com o pretexto errôneo de proteção da sua sociedade.

 

 

 

 

Aqui já não é mais de muros físicos a que nos referirmos, mas de muros invisíveis. Essa abstração de um instrumento de separação arcaica acaba por separar infindavelmente aqueles que são distintos, impossibilitando a união com o diverso, com o singular, com o outro que atesta a minha própria individualidade. É um problema que persiste devido à constante perturbação do conforto trazido pelo comum, pelo genérico, conhecido e trivial. O comum é facilmente partilhado, pois não exige além do que é conhecido. A perturbação desse estado gera receio, e no mundo globalizado, nesta “era da informação”, a perturbação é constante, logo, o receio também é.

 

 

 

 

É perceptível, quase como um conhecimento a priori, que o medo é a qualidade primária fautora da construção de muros. Ninguém se fecha em si mesmo ou ergue qualquer barreira se não for para se proteger. Essa proteção é indicativo do medo presente de perder algo, seja um objeto externo ou algo interno, constituinte da identidade. O medo tem o seu valor na manutenção da espécie humana. É vista como zelo quando se tem medo pelos outros. Mas ainda assim nela residem grandes perigos. Pois o medo impede a ação, e a não ação é a qualidade do covarde. O covarde se fecha e apenas reage frente à ação de outros. Especialmente quando o outro perturba a estrutura ordinária e seguramente categórica de um, a reação deste tende à violência. Num mundo em que homens se avizinham cada vez mais, o covarde se aninha medroso e fortifica os seus muros invisíveis. Quando não consegue impedir os outros diferentes de se aproximarem, ataca e afasta, como um cão acuado.

 

 

 

 

Neste sentido podemos afirmar que o medo é razão da contenda humana. A violência e afastamento do diferente é ação do covarde que reage à aproximação daquele que perturba uma estrutura dada e instável com aparência de segura. Spinoza já dizia que o medo é afeto da tristeza instável que leva à servidão. Qual servidão seria esta? Aquela na qual nos submetemos à vida em si. Qualquer um que tem absoluto medo de perder qualquer coisa está submetido ao objeto que protege. E se ainda há uma figura de força política que promove a manutenção da identidade imperturbada com um discurso de afastamento dos diferentes que se aproximam, então o covarde se sujeitará a este e tal figura política terá grande prestígio. É assim que surgem os discursos nacionalistas. É assim que aumenta o muro visível entre EUA e México e o muro invisível entre descendentes europeus e índios no Brasil.

 

 

 

 

O medo, portanto, desagrega. O covarde é reagente e passivo e incapaz de agir politicamente. Outros agem por ele e ele se protege. Sem ação política não há relação. Está instaurada, neste sentido, a expulsão do outro. Criam-se muros para manter dentro dos seus limites os comuns, triviais e congêneres. Para o covarde a vida pública é limitada aos que são iguais a si e que não são motivo de temor algum. O covarde procura aquele que é ele no outro; procura a si mesmo. Se o outro diferente se aproxima, o covarde ou o afasta ou procura submetê-lo, tornando-o igual a si. No entanto, se vivo apenas com iguais, não convivo com outros, mas, apenas comigo mesmo na forma de outro. Não sou autônomo, nem independente. Ao tirar do homem o seu eu singular, tira-se a possibilidade de vida plural. Não sobra pessoa, sobra máquina. O ser é para si somente e é sintetizado em uma coisa. Por conseguinte, o covarde, fechado em seus muros com os seus pares não é cidadão, é componente orgânico impessoal e robótico. É um ser-objeto incapaz de reconhecer e sentir-se reconhecido, pois ignora o diferente que poderia atestar a sua singularidade. Não à toa percebemos uma grande falha ética nas esquinas da sociedade contemporânea. Chamam de desigualdade e preconceito. Chamo de covardia.

 

 

 

 

Quem são os diferentes que sofrem com a exclusão? Eles aparecem sob a alcunha de minorias. Nem todos são minorias, mas são minimizados e destituídos de valor diante da multidão de medrosos. As mulheres foram destituídas de valor logo cedo, pois os homens ganharam força pela força física que pouco sentido faz hoje; mas ganharam poder societal e, por medo de perdê-lo, ainda mantém a desvalorização daquelas que não são homens, reduzindo-as a receptáculos. Os homossexuais mostraram que há evidente distinção entre afeto e procriação e abalam as estruturas conservadoras vistas como superiores pelos transformadores do mundo, distinguindo-se de tal modo que não há pecado mais malquisto pelos outros pecadores convencionais. Os indígenas são simplesmente inconvenientes ao apresentarem a ideia de que o modo de vida europeu não é o único legítimo, mas que por isso mesmo foi classificado de ilegítimo, além de serem um empecilho econômico. Os estrangeiros são vistos como perigosos por somarem a cultura deles à outra, tida como canônica. Os negros evidenciaram algo no passado que hoje se esqueceu, enquanto a tradição de serem desdenhados poucos se esquecem – pois o racismo é um tradicionalismo alienado herdado.

 

 

 

 

 

Estes excluídos, postos para fora dos muros invisíveis, parecem incutir uma reflexão pavorosa nos mestres construtores de muros. Uma reflexão que pode modificar as relações conhecidas e que por isso mesmo os enche de medo. No entanto, a própria sabedoria bíblica – a mesma usada por muitos para excluir – expõe com clareza que “no amor não há medo; antes, o perfeito amor expulsa o medo” (1 João 4.18). De fato, ao se tratar do amor não apenas como algo que aproxima sentimentos românticos, mas como aquilo que ele é na sua forma aperfeiçoada, a caridade, então podemos propor a cura para a covardia e para a exclusão mediante muros. Essa espécie de amor ultrapassa qualquer muro, pois ele acolhe e inclui. Não causa espanto que a personalidade que inspirou a passagem acima, o verdadeiro Messias, deixou indubitavelmente explícito pelo seu próprio exemplo o amor que devemos ter para com os excluídos. Foi por derrubar muros ao invés de fortificá-los que ele foi executado. E nessa caridade reside a força para vencer os medos descabidos. Nessa caridade reside a sabedoria de enxergar no outro diferente alguém que soma e embeleza. Nessa caridade reside a coragem de derrubar os muros e se lançar confiante nas relações inusitadas, surpreendentes, extraordinárias e, por isso mesmo, somatórias. Essa coragem de amar, ou seja, coragem de derrubar os muros invisíveis é qualidade política ativa. É ação daquele que se vê como cidadão autônomo e singular. Este sim é homem, é ser humano, é ser-para-outro.

 

 

 

 

Esta coragem, portanto, é princípio humanizante. Uma sociedade cheia desta caritas corajosa será muito mais apta a vencer as desigualdades, os preconceitos, a violência e todo tipo de injustiça. Mas para isso é necessária a ação de abandonar o medo de se expor. É um risco, é verdade. Mas qual transformação vem sem riscos?

 

 

 

 

*André Gaulke é mestre em Filosofia e tutor do Curso de Filosofia da Uniasselvi

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