Wladislaw Rony Volesky era o nome que estava escrito no documento que conseguiu carregar consigo
Dentro de mim mora uma paixão inata pelo jornalismo. Desde os tempos em que cursava o primeiro ano do curso Científico ─ hoje Ensino Médio ─, em Joinville, eu já me via narrando fatos por mim vislumbrados nas ruas por onde passava no meu ir e vir ao Colégio Bom Jesus.
E este ratinho ficou a roer-me as entranhas pela vida. Tínhamos os nossos jornaizinhos mimeografados, da turma da Faculdade de Medicina, e mesmo um, impresso, oficial, de nosso Diretório Acadêmico “Nilo Cairo”, nos quais, eventualmente, eu jogava as minhas letras.
A realização do sonho aconteceu quando conheci um dos diretores do Jornal “O Dia”, de Curitiba. Precisavam de alguém para escrever uma coluna sobre discos e música. Nada mais precisaria ser dito. Porque era algo que estava dentro de mim. Era só ir atrás das novidades e escrever sobre novos lançamentos, sucessos do momento e coisas de tempos passados.
Com o correr dos dias, outras colunas para comentar sobre teatro, cinema, acontecimentos da vida estudantil e social faziam parte de uma página inteira do jornal. Era o meu “Encontro Matinal”. Para ilustrar o que eu contava, imagens captadas pelo fotógrafo do jornal eram necessárias. E o do nosso jornal era um cara muito especial.
Entre uma aula e outra, sempre no período da tarde, eu redigia a minha coluna, ou melhor, a minha página, em uma das velhas Remingtons da sala de redação. Eu preferia não mudar de máquina de escrever. Habituamo-nos com os defeitos das velhas amigas e ficar trocando não funciona. Os colegas da redação achavam que aquela seria a melhor porque dela eu não me desprendia… Demorou para eu entender o que Rony, o meu amigo fotógrafo, fazia, sentado na “minha mesa” e catando milho na “minha máquina”. Redigia um horóscopo, imaginado por ele, e ali ficava, como cão de guarda, impedindo que aventureiros ousassem tomar o meu lugar. Amigo é para estas coisas.
Era um excelente profissional. Captava imagens inacreditáveis a deixar pasmos os repórteres e os leitores do jornal.
Rony era o nome pelo qual o conhecíamos. Wladislaw Rony Volesky era o nome que estava escrito no documento que conseguiu carregar consigo. Levava-o grudado ao corpo, durante os dias da trágica fuga que empreendera, saindo de sua cidade natal, na Tchecoslováquia ocupada pelos nazistas, através de rios e campos e montanhas.
Sempre que eu terminava de redigir a minha matéria Rony acompanhava-me, primeiro, para tomarmos um cafezinho no bar da esquina e depois até o ponto do ônibus que me levaria ao Hospital de Crianças Cesar Perneta.
Rony andava sempre, nos tempos de frio, envolto com seu sobretudo negro, cheio de grandes bolsos, carregados de rolos de filmes e das demais parafernálias usadas em seu métier de fotógrafo. Nos dias de calor jamais dispensava o paletó, mesmo que estivesse usando camiseta de malandro.
Nos ombros, as grandes e perfeitas câmeras profissionais, as Rolleiflex que captavam imagens incríveis em ângulos impossíveis.
Jamais esquecerei o dia em que Rony acompanhou-me em uma comemoração da UPE, União Paranaense de Estudantes. Realizava-se na zona rural, nos arredores de Curitiba. Futebol e outros jogos eram disputados entre os diversos cursos das faculdades sediadas naquela capital. Churrasco assado em fogo de chão, com muita salada e pão, cerveja e refrigerantes completavam a confraternização.
Rony levou uma câmera extra. Ensinava-me a arte de bem manejá-la. De escolher os melhores ângulos no mais curto espaço de tempo. Porque, explicava-me ele, repórter fotográfico não pode esperar pela pose. É naquele átimo de segundo, ou nunca mais. Mandava-me ir disparando ao léu tudo o que por minha frente passasse.
Estávamos em um terreno rural. Com criação de gado. Vacas pastando. E eu clicando. Cheguei à perfeição de conseguir fotografar uma bela espécime Hereford sem os membros anteriores e nem os posteriores. Apenas o corpo central… Eu era neófita, caloura e fui perdoada pelo mestre. Muito aprendi desta arte com ele.
Nestas nossas andanças, a trabalho ou em dias de lazer, depois de alguns canecos de chope─ que, raramente, tomava ─, Rony ia contando a sua grande aventura. A aventura que o trouxe, fugitivo, para viver em nossa terra.
Há trechos desta trajetória que eu não consigo lembrar sem que me venham lágrimas aos olhos.
Rony era um adolescente, ainda, quando as tropas nazistas invadiram a sua cidade natal, na Tchecoslováquia. Nunca citou o nome de sua cidade. Dizia ser da região da Morávia. Seu pai era alfaiate. Uma profissão importante, pois cavalheiros que se presassem não vestiam roupas confeccionadas em fábricas. Tinha um atelier de renome e muito bem frequentado.
Rony estava iniciando seus estudos em um colégio de ensino médio, quando as tropas de Hitler invadiram a Tchecoslováquia. Cresceu em meio ao terror dos tacões nazistas. Foram muitas as peripécias engendradas pelos jovens de seu tempo, a fim de sobreviverem sob um domínio que nada tinha a ver com as milenares tradições de seu povo.
Imiscuiu-se entre os que propugnavam por uma Tchecoslováquia livre da opressão que os dominava. Tarde demais ele e seus companheiros perceberam sua fraqueza. Os pais dos jovens foram os primeiros a sucumbirem ante as razões dos fuzis, em um paredão. Seus irmãos e muitos de seus amigos tiveram a mesmo destino.
Em uma tarde, ao retornar para casa, depois de muitas andanças pelos arredores, encontrou apenas um terreno devastado. Entre as cinzas catou o que restava que lhe pudesse servir. Conhecia os meandros do entorno de seu lar.
Embrenhou-se, primeiramente, pelo buraco que daria acesso ao que restara do porão de sua casa. Alimentava-se com restos do que encontrava, à noite, quando tinha coragem de, na escuridão total, sair de sua toca. Conseguiu juntar uns trapos nos varais vizinhos e com uma pequena trouxa e um bordão feito com o ramo caído de um a árvore deu início a uma fuga que não sabia onde iria dar.
De seu esconderijo conseguiu chegar aos esgotos da cidade e, de gatinhas, a um vazadouro que fluía para dentro de um afluente do rio Morávia. Seguiu, por ele, esgueirando-se por seus barrancos. Dias e noites passaram-se assim. Alimentava-se com pequenos peixes que conseguia captar com as mãos, comendo-os crus mesmo. Não arriscava acender um fogo para que o clarão e a fumaça não o traíssem.
Não portava com ele uma bússola. Só sabia que seguia o curso do rio. Que seguia em direção noroeste. Mas não tinha ideia até quando poderia continuar nestas alucinadas andanças.
Caminhava nas noites iluminadas pela lua e seguindo o rumo das estrelas. Em uma destas noites, ao avizinhar-se de uma pequena vila ouviu o inconfundível som do tacão de botas batendo, compassadamente, na calçada, bem ao lado de onde se encontrava. Estava esquálido, magro, esfarrapado. Imaginou que a fome que o corroía enchia sua cabeça com sons amedrontadores. Um cemitério ao lado. Esgueirando-se, como se parte do muro fizesse, nele entrou. Conseguiu dar um salto e dentro de um túmulo escondeu-se, nele permanecendo por um tempo indefinível. Não sabe contar quanto tempo ali passou. Porque o sono que dele tomou conta parecia não ter fim.
Finalmente arranjou forças e, arrastando-se, em uma noite deixou o leito inusitado. E assim continuou por muito tempo. Desde aquele dia procurava sempre os cemitérios para passar os dias. E na escuridão da noite continuava andando. Não sabia onde se encontrava. Sabia que não seria na Polônia ocupada. Porque quando percebeu que o Morávia se estreitava e que logo chegaria perto de suas nascentes nas montanhas mais altas, decidiu mudar de rumo. O outono aproximava-se e naquelas gélidas temperaturas ele sucumbiria. No inverno acomodava-se dentro de chiqueiros, em meio aos porcos. Para sentir menos frio.
Raízes mais tenras ou o que pudesse catar pelas plantações que percorria eram o seu alimento. Teve cólicas intestinais tenebrosas. Houve dias seguidos em que nem dos esconderijos conseguia sair.
Acordou um dia, dentro da escuridão tumular onde se encontrava, com som de músicas alegres. Parecia-lhe que pessoas cantavam em línguas estranhas. Esperou, como sempre, a noite chegar. Que era quando continuava sua peregrinação sem fim. Que era quando procurava algo para aliviar sua fome. Que era quando procurava água para aliviar sua sede.
E então encontrou milhares de pessoas a cantar. Encontrou soldados com as mais variadas fardas. Era o dia que ficou conhecido como o dia V, o dia da Vitória, o dia 7 de maio de 1945. Numa mistura de idiomas onde alternavam-se o alemão, polonês, inglês, francês, russo e tcheco ele ficou sabendo que dias melhores viriam. Não sabia como. Mas sentiu que assim seria.
Foi hospitalizado. Feridas causadas por espinhos. Pústulas. Beribéri. Escorbuto. Era um garoto quando fugira de sua terra natal. Era um homem agora, ainda que meio imberbe, com muitas histórias para contar.
Aprendeu muitas artes e ofícios até encontrar o capitão de um navio cargueiro que daria a volta ao mundo. Como taifeiro nele embarcou. E num dia qualquer, de um ano qualquer, resolveu deixar a vida no mar para trás e desembarcou em Paranaguá.
Subiu a serra da Graciosa, de trem, e em Curitiba encontrou seu chão. Muitos imigrantes eslavos, que falavam sua língua, lá encontrou. Estudou. Aperfeiçoou-se na arte da fotografia.
E foi, como fotógrafo do jornal “O Dia”, de Curitiba, que eu o conheci. Um grande amigo que ficou perdido nas calendas do tempo. Apenas nas calendas do tempo. Porque dele e de sua história eu sempre me lembrarei.