Foram muitos os músicos que deixaram suas marcas, seus sons pelas paredes que ladeiam as nossas ruas
Outro dia, comentando a vida e a história do piano de nossa família cometi um lapso. Porque, por um lapso de tempo, ele ficou na sala de visitas de nossa casa, ao lado da Praça Lauro Müller, em Canoinhas. Ali permaneceu durante o tempo em que na cidade estivemos morando.
Foi nesse tempo que ele virou, junto com outros mais, um astro da música. Morávamos ao lado do Cine Teatro Operário. Além de exibir filmes e, eventualmente, peças teatrais o local destinado à plateia era um salão de bailes e domingueiras.
No velho prédio, que o fogo levou, a diagramação daquele espaço era diferente. O palco ficava na parte dos fundos. Um palco que viveu dias de glória. Não apenas com apresentações teatrais. Inúmeros espetáculos musicais foram apresentados na velha Sociedade Beneficente Operária.
Dois pianos na ribalta. Execuções a quatro mãos. Pianistas revezavam-se para deleitar o público que, vibrando junto, aplaudia em pé. Violinistas faziam parte destes espetáculos também, solando de Schubert a Ave Maria e a inesquecível Serenata. Entre outras peças clássicas e populares de então.
Tenho, ainda hoje, a imagem de Mimi Wendt, a dona Elmi Wendt Mayer em um dos pianos e dona Cecy Cesconetto em outro. Ou minha irmã Aline com Carmen Sheide, ainda adolescente a tocar.
Carmen começara, precocemente, a correr seus dedos pelas teclas brancas e negras. Sua mãe, Dona Clara, era pianista e professora de piano também.
Foram muitos os músicos que deixaram suas marcas, seus sons pelas paredes que ladeiam as nossas ruas. Eram os conjuntos musicais de nossa terra que abrilhantavam as danças nos salões. Nas soirées e nas domingueiras do Operário e do Clube Canoinhense.
De poucos a lembrança dos nomes me vem à tona. Seu Joaquim de Paula Vieira, que era agente da estação, fazia parte de um destes conjuntos, Tocava flauta. De seu grupo fazia parte o seu Inácio, que era chefe de trem e tocava violino. Eram vários os componentes. Artistas da arte de dedilhar violões e cavaquinhos. Sempre alguém a solar um saxofone, um pistão. Lembro-me de um senhor, bem moreno, já de cabelos brancos, que morava perto das barrancas do rio Canoinhas e que tocava trombone. Não o de vara, mas um tipo mais parecido com o bombardão. E claro, o acordeão jamais poderia ser dispensado.
Antes do acordeão era o bandôneon, a gaita de fole com botões e não com teclas. Recordo-me do seu Jovino Schindler, o encarregado da velha usina de energia elétrica de minha vila que era um exímio bandoneonista. Apresentavam-se sempre de terno e com as indefectíveis gravatinhas borboleta.
Estudar e tocar algum instrumento musical, talvez fosse a coisa mais banal nos tempos em que eu era criança. Muitas pessoas de minha vila sempre estavam a dedilhar ou soprar seus instrumentos.
Minha irmã Avany começou a ter aulas de violino com as Irmãs Franciscanas em nosso Sagrado Colégio. Após as férias escolares, deixou intrigada a mestra do violino com a forma como ela já estava tangendo, com o arco, as cordas de seu instrumento. Ela havia tido aulas diárias, em nossa vila, com um senhor já de certa idade, que, para toda a população era um simples colono. Um colono em Marcílio Dias que era exímio violinista e professor de violino. Assiduamente, durante os meses das férias grandes de verão, durante quatro horas diárias ficava ele a ensiná-la. Não sei como se escreve o sobrenome deste senhor. Mas era conhecido como Velho Fublic. Um artista.
E havia, na minha vila, a banda de música Wiegando Olsen. Composta por uma plêiade de instrumentistas de sopro. Assessorados por acordeonistas, violonistas e uma bem ritmada bateria. Animava os bailes não só do meu rincão encantado, mas também de toda a redondeza.
Há uma história desta banda que da memória não me sai. Não sei se naquele tempo já era chamada de Piston de Ouro. E foi em uma destas redondezas que o baile fatídico aconteceu. Era um baile de formatura de ginásio. Em uma localidade a uns oitenta quilômetros daqui. Tudo estrada de chão.
Meu colega Antoninho Seleme encontrava-se de plantão no Hospital Santa Cruz. Não havia ainda Pronto Socorro Municipal. A noite de sábado tinha sido tranquila. Meados de dezembro. Calor. Dia mal raiando. Os albores da madrugada em andamento no horizonte. Dirigiu-se para a porta da frente do hospital para tomar um ar fresco e fumar o seu palheiro. Era assíduo fumante de palheiro. Foi então que viu as luzes de um grande veículo subindo a colina de acesso, em alta velocidade. À porta, brusca freada, rangendo pneus! E mais de uma dezena de pessoas feridas dele descendo, aos gritos. Clamando por socorro! Ferimentos à bala em pernas, ombros, braços… Um entrevero no meio do baile.
Nestas alturas eu e mais outros colegas já lá nos encontrávamos para colaborar no atendimento, que, a princípio parecia não ter fim.
Mas nenhum dos feridos se lamentava tanto quanto os componentes da banda. Um dos tiros atravessara o couro de ressonância da bateria, deixando-a imprestável. Outros passaram de raspão pelos instrumentos de sopro. Desafinaram-se os instrumentos.
Quase que, depois deste incidente, tornou-se obrigatório usar, como uniforme, um colete à prova de balas, para fazer parte de uma banda de música que abrilhantasse bailes e festas em certos rincões.
Mas eu tenho uma lembrança muito linda desta banda de minha vila. Comemorava, com minha família e meus amigos o meu aniversário em nossa casa de Marcílio Dias. No meio da algaravia da festa, entre brindes e bolos, recebo um recado. Eu deveria ir até o grande varandão. Do lado que fazia frente para o Salão do Metzger, hoje, Bar do Coringa.

Ao chegar junto à balaustrada os componentes da banda, em plena rua, sob a luz da lua e de tênues lâmpadas, tocam para mim o tradicional “Parabéns pra você”. E outras músicas mais, bem do meu gosto. Inesquecível noite com o som dos instrumentos de meus amigos a inundar a noite de minha vila.
Era difícil um sábado sem baile no salão do Metzger. Era incrível eu só me acordar, depois que o baile acabava, com a algazarra e o barulho dos escapamentos de carros e motos. Creio que era um tempo em que o som para dançar era mais suave, mais na base de instrumentos melodiosos. A bateria lá estava apenas como um acompanhamento, para dar o compasso.
Havia um conjunto tão especial, de uma finura tão grande em solar seus instrumentos, que as noites de baile do vizinho salão eram noites de ninar gente grande. E no embalo daquelas melodias eu ficava sonhando acordada. Minha tristeza hoje é não me recordar o nome daqueles artistas do violão e dos saxofones que tantas noites de sonho me proporcionaram. Na distância, a música envolvia-me.
Numa manhã de domingo, ao chegar ao centro cirúrgico de nosso hospital, para um procedimento anestésico, falei, para minhas preciosas ajudantes, da música que embalara meu sono naquela noite. E uma das meninas falou-me que era o conjunto musical de seu pai.
Eu sou movida à música. E estes pedaços de minha vida, em que a boa música esteve presente, ficaram profundamente marcados.
Certa noite, estava eu em Curitiba, com minha amiga Isis. Tínhamos ido assistir a uma apresentação da cantora argentina Mercedes Soza. Ao final fomos procurar um local para comer alguma coisa antes de encetarmos a longa viagem de volta, pela madrugada afora. Largo da Ordem. Um local aberto. O som de um piano evoca-me para tempos passados. A maneira de tocar. O estilo. A melodia que solava. De Antônio Marcos. Só poderia ser um dos Pereira. Era o Carlinhos. As emoções levaram-nos ao tempo em que eu os ouvia por aqui. Formaram até um conjunto musical. “Os Cinco Peras”. Uma família inteira com a música na alma. Quinco. Quantas vezes eu o ouvi no piano lá de nossa casa, em Marcílio Dias. Eu tinha até uma fita cassete com ele ao piano. Todos brilhantes músicos.
Além deles outros solistas de violão. Como o meu amigo Mario Cesar Gallotti Silveira. Tocava com o grupo “Os Atômicos”. Deixou discos gravados também.
Fico a pensar como as Irmãs Franciscanas de Maria Auxiliadora conseguiram cultuar uma verdadeira orquestra de cordas em tempos passados. Com incentivos do setor público e privado, naquela época já, hoje em dia, com os músicos que temos e com o legado dos que já nos deixaram, teríamos uma Orquestra Filarmônica de Canoinhas.