As estatísticas chamam nossa atenção, mesmo levando em conta questões raciais
Prof. Rafael Garcia dos Santos*
“Pegue a América como exemplo claro, ela está nas piores condições, as pessoas eufóricas, a histeria, a embriaguez, a anormalidade, o vão reinado da turba, o fracasso, o colapso, a lamúria moralista, eu nunca vi algo mais obscenamente delirante do que este lugar” – Louis-Ferdinand Céline (Escola de Cadáveres)
Um pouco mais de uma semana após o assassinato do cidadão americano George Floyd pela polícia de seu país, o mundo inteiro viu manifestações genéricas “antirracistas” e antiautoritárias, mesmo que o foco da intensidade seja o próprio EUA.
Primeiro, devemos enfatizar que o comportamento dos policiais envolvidos no caso é injustificado. Em nenhum manual da polícia seria considerado aceitável pressionar por quase 10 minutos o pescoço de um cidadão que já estava imobilizado e que não estava resistindo.
Falar sobre causas nos leva a caminhos complexos. Os EUA são, é claro, um país mergulhado em tensões raciais que nunca foram resolvidas. O racismo é algo concreto e real lá. E aqui, estamos falando em várias direções. Todos os grupos raciais se tensionam.
Havia quatro policiais envolvidos no caso. Os que tiveram o envolvimento principal foram Derek Chauvin, que assassinou George Floyd, seu parceiro Tou Thao e outros dois policiais que se aproximaram de Floyd, Thomas K. Lane e Alexander Kueng. Derek e Thomas são brancos, Tou é asiático e Alexander Kueng é um mestiço. O chefe de polícia de Minneapolis e superior desses policiais, Medaria Arradondo, é negro.
O registro dos oficiais mais diretamente responsáveis revela que os dois foram desnecessariamente brutais. Chauvin esteve envolvido em vários tiroteios e tem mortes pouco explicadas nas costas. Thao segue a mesma linha. É importante observar que, ao longo de sua carreira, esses policiais foram encobertos pelo departamento de polícia, cujo chefe, vamos repetir, é negro.
Um comentário que devemos fazer é que o fato de a polícia americana não ser militarizada não torna esses casos raros. A noção, portanto, de que a desmilitarização da polícia militar brasileira reduziria os casos de abuso não parece ser apoiada (embora possa haver outras boas razões para a desmilitarização). Os casos de abuso policial abundam nos Estados Unidos.
Mas as estatísticas chamam nossa atenção, mesmo levando em conta questões raciais.
Em 2019, a polícia americana matou 1.843 pessoas. Destes, 640 eram brancos, 432 eram negros, 234 eram “hispânicos”, 38 asiáticos, 17 indígenas, 4 do Oriente Médio e os demais eram de origem não especificada. Mas é importante levar em consideração a demografia, pois 60% da população americana é branca, 17% é “hispânica” e 13% é negra.
A polícia americana mata mais brancos do que negros, aparentemente. Mas os negros morrem proporcionalmente mais. As estatísticas “hispânicos” são confusas, porque existem hispânicos brancos e hispânicos negros. E os não especificados atrapalham ainda mais. Lembremos também que este bolo não é apenas sobre pessoas “executadas”, mas também inclui pessoas mortas em confronto com a polícia.
Fora da interação policial, nos aproximadamente 6.000 homicídios solucionados em 2015 em que a raça do assassino e da vítima era conhecida e em que ele era apenas vítima e autor, 2380 negros foram mortos por outros negros, 2574 brancos foram mortos por outros brancos, 500 brancos foram mortos por negros, 229 negros foram mortos por brancos. O que sobra envolve outras raças. Mas as estatísticas americanas são confusas.
O que é surreal é que apenas o número de pessoas mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro (1810 em 2019) já é equivalente ao número de pessoas mortas pela polícia nos EUA como um todo. Então, por que estamos importando essa agenda de “Black Lives Matter” para o Brasil? Não seriam nossos problemas muito diferentes deste problema americano?
Vejamos, portanto, que o elemento racial nos EUA é particularmente pronunciado e relevante, mas que as coisas não acontecem de maneira “em preto e branco”, sendo bastante multifacetadas. Os Estados Unidos são um prato cheio para psiquiatras (e, de fato, os psiquiatras se comportam como deuses, prescrevendo remédios faixas pretas como a água, o que leva a massacres nas escolas). Além de qualquer racismo consciente ou inconsciente, é possível ver elementos de sadismo, autoritarismo e abuso de poder muito claramente.
*Prof. Rafael Garcia dos Santos é doutorando em Sociologia