Se tenho apenas 45 minutos de almoço, um fast food é a solução real, mesmo que saibamos que não seja a ideal
Edina Maria Burdzinski*
É inegável que a pandemia causada pelo novo coronavírus nos fez repensar muitos aspectos de nossa vida. A possibilidade de que nossa interferência na natureza possa realmente causar mudanças e estas podem estar relacionadas diretamente às mudanças biológicas que causam mutações como novos vírus, por exemplo, não podem mais ser descartadas.
Entre tantos outros fatores, hoje sabemos que a monocultura, a agricultura em grande escala e a indústria de alimentos interferiu e interfere diretamente na natureza. Para o historiador e pesquisador dos hábitos alimentares Ken Albala, os custos periféricos desse modelo reducionista se tornaram visíveis para nós. Para a agricultura, o resultado foi a degradação do solo, a perda de nutrientes, a poluição, os pesticidas tóxicos e cancerígenos. Para nossa alimentação, um paradoxo que nos parecia impossível há alguns anos atrás: de um lado a crescente desnutrição e fome, por outro aspecto uma superprodução de calorias em comidas super processadas que introduzem uma dieta repleta de açúcares e gorduras que tornam as pessoas cada vez mais suscetíveis a doenças, nos alerta Albala.[1]
E realmente, é só abrirmos nossa geladeira e armários de cozinha que nos deparamos com enlatados, envasados, embutidos, gaseificados, processados, salgados, aromatizados, colorificados, enfim, artificializados. De certa forma, naturalizamos, e prestem atenção nas palavras caros leitores, tornamos natural o artificial. Natural ao ponto de não nos escandalizarmos com a expressão “contém suco de laranja” numa embalagem que se propõe vender suco de laranja. Oras? O que deveria ter numa embalagem que se propõe vender suco de laranja além do suco de laranja?
Mas aí reside justamente “a alma do negócio” ou a solução para os nossos problemas: se tiver apenas suco de laranja na embalagem de suco de laranja, ela não estará disponível para o consumo por muitos dias, não poderá ser transportada, deslocada, armazenada, estocada e não estará nas prateleiras “prontinha” para colocarmos em nossos carrinhos de compras e de lá, para nossas casas e para nossas mesas. Até porque, Albala também nos lembra que a monocultura e a produção de alimentos no mundo, muito a partir da década de 1950 em diante, optou por defender a ideia que seria mais barato produzir laranjas em uma “ponta do globo” e fazê-la chegar a outra por meio de uma logística de produção, métodos químicos/industriais de conservação, deslocamento e distribuição do que produzir ou utilizar laranjas in natura locais, por exemplo. A globalização foi pensada e efetivada muito mais pela lógica de diminuir custos de produção e distribuição, aumentar e concentrar lucros e muito menos pela lógica da qualidade em si dos alimentos e muito menos ainda pelas consequências dos alimentos altamente processados na natureza e na biodiversidade de recursos naturais do planeta ou em nossas dietas e corpos humanos.
Até aí, nenhuma novidade, o “colorido artificialmente”, o “contém estabilizantes”, acidulantes e conservantes tornou-se comum e infelizmente, naturalizado em nossas rotinas diárias de trabalhadores que não controlam mais seu tempo pela natureza, mas sim pela máquina. Há uma justificativa para esse sistema ter funcionado tão bem até agora e impulsionado um modelo, uma lógica de produção e consumo de alimentos processados.
Além do marketing em torno dessa lógica de mercado, isto funciona tão bem porque simplesmente não temos tempo de cuidarmos diretamente da nossa alimentação. É o tempo que temos para cuidar de nossa alimentação que na maioria das vezes decide o que levamos à mesa ou o que almoçamos hoje, não há muito poder de escolha. Se tenho apenas 30 ou 45 minutos de almoço, um fast food é a solução real, mesmo que saibamos que não seja a ideal.
Diante deste cenário, mesmo sabendo que ainda somos reféns do tempo que temos para que possamos efetivamente mudar nossos hábitos alimentares para práticas mais saudáveis, a busca por alimentos naturais cresce significativamente. Segundo pesquisa da Euromonitor Internacional de 2019, o Brasil subiu uma posição em relação ao ano anterior e ocupa a quarta colocação mundial no ranking de vendas de alimentos e bebidas saudáveis, um mercado que movimenta cerca de US$ 35 bilhões por ano.[2]
É notório que a sociedade caminha cada vez mais rumo ao consumo de alimentos naturais, orgânicos e veganos. O mercado, obviamente não fica alheio a estes movimentos e a indústria de alimentos passa a se desafiar no sentido de oferecer produtos que atendam a estas demandas.
Não podemos deixar de destacar aqui que a lógica da industrialização e do consumo sempre foi acompanhar tendências sociais e se apressar em apresentar ao consumidor produtos que vão ao encontro dessas tendências. Com relação ao consumo de alimentos saudáveis não é diferente. E a inserção do slogan “natural” aos produtos industrializados já é prática consolidada e não entrarei nesse mérito aqui neste momento. O que pretendo destacar são ao menos três movimentos que desde o final do século XX impulsionaram uma crescente mobilização em torno das pesquisas e práticas sobre a importância de ver a alimentação humana como algo que vai muito além de apenas satisfazer as necessidades fisiológicas e nutricionais. E nos mostram que nossa alimentação além de ser uma das coisas mais prazerosas, nos coloca a par de uma teia de significados muito maiores que envolvem herança cultural, memórias afetivas, identidade e diversidade cultural. E ainda por ser uma relação que envolve produção, distribuição e extração de recursos naturais de um planeta único, a alimentação também envolve relações sociais, econômicas e por consequência políticas.
Neste sentido, um dos movimentos que apresento aqui é um dos mais populares. O slow food (em tradução literal significa comida lenta), inicia-se a partir da década de 1980, por iniciativa do jornalista italiano Carlo Petrini. Em contraposição política e filosófica a massificação e padronização imposta pelo fast-food, o slow food promove ações que conscientizem e mudem práticas em torno de uma maior apreciação da comida, a melhoria da qualidade das refeições e uma produção que valorize o produto, o produtor e o meio ambiente.[3] Aliam-se ao movimento do slow food tendências como o cittaslow e o slow movement, ambos propõe uma redução na velocidade do ritmo de vida contemporâneo.
Um segundo movimento que gostaria de destacar é a chamada Gastronomia Sustentável. Seus princípios são aproveitar melhor os alimentos, dar força aos mercados menores e locais e aos produtores da agricultura familiar, redução no desperdício de alimentos, diminuição na geração de resíduos e proteção de espécies em perigo de extinção.[4] Além disso, a gastronomia sustentável promove o desenvolvimento agrícola, a produção consciente de alimentos, atitudes conscientes no preparo e consumo e ainda busca fortalecer a conservação da biodiversidade e a segurança alimentar das comunidades.
Um terceiro movimento que gostaria de destacar é o chamado de Cozinha Afetiva ou Comfort food. A cozinha afetiva tem sua marca na relação das pessoas com a alimentação com algo que remete a memória afetiva, à comida de avó e de mãe, que traz sensações boas e que alerta que para todos os produtos envolvidos na sua comida, é preciso valorizar as relações humanas por detrás delas.[5]
Neste sentido, ciente de todas as ações que envolvem a alimentação humana, e do quanto somos reféns do tempo controlado pela máquina moderna de trabalhar, produzir e consumir, que cronometra e interfere naquilo que realmente gostaríamos de fazer, mas, infelizmente nosso dia tem “apenas 24hrs”, o desafio é: como inserir mudanças em nosso dia a dia? Uma das características do tempo que é nosso é a velocidade com que as coisas surgem: novas práticas, novas técnicas, novos modos de inserir hábitos saudáveis em nossa rotina chegam todos os dias, como fazer com que deixem de ser apenas “ondas” e se consolidem como práticas efetivas?
Se compararmos estes movimentos como ondas, sabemos que para permanecermos nela, temos que ter habilidade e disciplina. Para falarmos de mudanças saudáveis e que não sejam “novas modas e ondas passageiras”, que empolgam no início mas não conseguimos mantê-las na correria das rotinas diárias, temos que ter primeiramente consciência que toda mudança que se torna hábito exige mudança construída aos poucos, que vai se estruturando e criando as condições para se manter de forma efetiva. Exige também mais tempo, persistência, pesquisa, exige muito mais autonomia e fidelidade aos princípios adotados. Mas, uma vez consolidados, proporcionam estabilidade, satisfação, sensação de empoderamento potencial no sentido de dizer: eu que fiz, eu posso fazer. É garantia de saber a procedência do que envolve sua rotina de alimentação e estilo de vida. Prazer em dedicar um tempo fora do ambiente da tecnologia e do tempo cronometrado pela máquina e precificado pelo mercado, junto a natureza.
Mas nós, em nossas casas? Qual é o sentido que podemos dar a aquilo que preparamos e alimenta nossa família? Minha aposta e hipótese aliam-se aos três movimentos acima citados e procura mostrar que a relação construída com os alimentos e por consequência mais saúde, bem estar e consequentemente melhor qualidade de vida como um todo, passa por inserir, mesmo que de forma tímida, hábitos que envolvam plantar (ver a terra, tocar a terra, manipular a terra) e ver nela a grandeza e a importância da natureza na nossa vida.
A terra que faz tudo germinar é a mesma terra que coabitamos com todos os outros seres humanos. É a terra que alimenta e faz nascer e crescer a planta que nutri, a nascente que sacia a sede, a árvore que equilibra o clima. E que cultivar qualquer que seja a plantinha, num quintal de casa, numa varanda de apartamento ou em uma pequena propriedade familiar, significa alimentar a esperança de dar à terra, um fôlego, um alento e uma sobrevida.
*Edina Maria Burdzinski é socióloga, professora de Sociologia e mestre Interdisciplinar em Ciências Humanas
REFERÊNCIAS
[1] https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/esa25-2_02_comendo
[2] http://revistasafra.com.br/cresce-o-numero-de-brasileiros-em-busca-de-uma-alimentacao-saudavel/
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Slow_food
[4]https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/semanadomei2019/conteudos/gastronomia-sustentavel-vem-mudando-o-mercado-da-alimentacao,abbf103bc7d1b610VgnVCM1000004c00210aRCRD
[5] https://vejasp.abril.com.br/blog/vida-boa/comida-afetiva/