Uma flauta ecoando na floresta

Era pela floresta, pelo desconhecido que ele queria andar. Era ao encontro do pequeno, do rude, do simples que ele queria ir. Um sonho de jovem. De jovem esperançoso. E a floresta era imensa. O desconhecido era imenso. E o seu sonho era ajudar aquela gente pequena e rude e simples das pequenas e rudes e simples cabanas semeadas pela floresta imensa. Era o sonho de um jovem.

E assim, nesse sonhou ele planeou sua vida. Estudou. Evoluiu. Cresceu. Em imagem física e em imagem espiritual. Em muitas noites sua companhia era apenas a sua flauta doce. Esquecia-se das horas e dos dias fluindo melodias sopradas com alma através de sua doce flauta. Sonhando e tocando. E fazendo ciência também.

Sempre rodeado de crianças. E de crianças depois foi cuidar. Aprofundou-se nestas coisas todas que entristecem e estragam a vida dos pequeninos. E nestas coisas todas que são descobertas para melhorar a saúde dos pequeninos e para alegria lhes dar.

E naquele mundo hostil e triste das enfermarias infantis ele sentiu algo diferente a lhe invadir o ser.

Estas crianças precisavam dele de maneira completa e total. Não apenas para curar-lhes o corpo. Precisavam dele para ajudá-las a moldar o espírito. O apelo do Alto atingiu por inteiro o seu coração.

E o encontrei depois com aquele sorriso de sempre, meigo e dócil, cuidando das dores físicas e ensinando o caminho do espírito para os tristes doentes daquela triste enfermaria. Às vezes sua flauta vinha alegrar os pequenos doentes.

Mas achou que ainda era pouco. Muito mais coisas poderia fazer. O mundo era grande. A floresta era grande. O pequeno, o rude, o simples na floresta grande. Sozinhos, doentes, sem rumo, sem nada. E ele era pequeno na cidade que era grande. O sonho do jovem esperançoso no rumo do imenso desconhecido. E foi para a selva imensa, com sua ciência, seu mundo espiritual e sua flauta.

E, numa ânsia de muito ajudar, mergulhou na imensa selva equatorial.

Tem muitas chagas pelo corpo. Teve todas as doenças que a aquela inóspita região nos reserva. Muitas cicatrizes. Um corpo dorido e não vencido. Um espírito altaneiro a levar alegria, paz, consolo, amor e música aos incultos e selvagens e simples homens da selva.

De barco percorre os rios e os igarapés para atingir com sua palavra amiga e sua ciência médica os desprotegidos mais distantes no seio da floresta imensa.

Quantas vezes a falta de coragem barrou o meu ímpeto de segui-lo, velho amigo e colega, neste seu desprendimento total das coisas da matéria e por esta imensa dedicação exclusiva que você dá aos nossos irmãos desta terrena jornada.

Você, colega, você que era o desligado, você que vivia na flauta, você que vivia num mundo diferente, todo seu, entrou no verdadeiro mundo onde deveríamos estar todos nós. Você, desconhecido, ignorado, com rugas e cicatrizes a lhe mapearem o rosto e o corpo, você está trilhando aquele caminho que eu não tive coragem de trilhar, aquele caminho que me ficou apenas na vontade e na imaginação.

Com certeza, nas quentes noites equatoriais em que você tem algum descanso, o som de sua flauta é recolhido por alguma estrela agradecida que reflete o brilho de seu espírito de músico, médico e sacerdote.

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Este texto foi escrito e publicado no Jornal “Barriga Verde” na década de setenta do século passado quando o nosso herói ainda era jovem como eu era.

Ele ainda se encontra entranhado na floresta equatorial cuidado daquela gente pequena e rude e simples das pequenas e rudes e simples cabanas semeadas na floresta imensa.

Hoje o meu amigo médico pediatra e padre José Raul Matte está sendo reconhecido internacionalmente. Publicou livros sobre as Missões Camilianas na Amazônia e recebe as gratificantes homenagens que lhe são devidas com a mesma humildade de sempre.

 

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