LEIA O ESPECIAL

Canoinhas também marchou pela família e pela liberdade

 Rivais à época, jornais Correio do Norte e Barriga Verde, num raro momento de concordância, apoiaram o golpe

 Poucos anos atrás, numa tarde fria de inverno, uma fogueira levantou alto nos fundos do 3º Batalhão de Polícia Militar de Canoinhas. Sob ordens superiores, um soldado queimou o que restava de documentos produzidos pelo quartel sobre os investigados de subversão durante o ápice da Ditadura Militar no Brasil.

Viraram cinzas os relatos de um dos momentos mais obscuros, mas não menos importantes de nossa história.

Nesta segunda-feira, 31, chega-se a 50 anos do golpe militar no Brasil. A importante da data tem sido lembrada com fatos inéditos com a recente declaração do coronel reformado Paulo Malhães, que afirmou à Comissão Nacional da Verdade que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos na ditadura. Disse não ter remorso e que mutilar corpos era “necessidade”.

A despeito da repercussão nacional da data, o CN mergulhou nos seus arquivos e, numa comparação com seu arquirrival e contemporâneo durante a ditadura, o jornal Barriga Verde, analisou como os canoinhenses absorveram o golpe. Testemunhas contam como, nos anos seguintes, os canoinhenses sentiriam a mão pesada dos militares no poder.

 

A imprensa e o golpe

“Voltou o Brasil à liberdade! Vitoriosa a democracia”, festejava o Barriga Verde de 2 de abril de 1964. O CN não deixava por menos: “Voltou ao Brasil à normalidade.”

O texto diz o seguinte: “A nação brasileira que vivia num clima de insegurança, apreensões e incertezas, foi sacudida nas primeiras horas de terça-feira última pelo vigoroso movimento militar, apoiado desde o início, pelos governadores Magalhães Pinto, de Minas Gerais, Ademar de Barros, de São Paulo, Ney Braga, do Paraná, Ildo Meneghetti, do Rio Grande do Sul, e Carlos Lacerda, de Guanabara, que visava única e exclusivamente, recolocar o país no clima de ordem, paz e trabalho, que sempre foi seu apanágio.”

O jornal pertencia a Aroldo Carneiro de Carvalho que, então era da UDN. O Barriga Verde defendia seu principal opositor, o PSD.

Mais tarde, todos os partidos brasileiros seriam extintos pelos militares. Somente dois tinham autorização para existir: o governista Arena, ao qual Carneiro se filiou e o MDB, ao qual se filiou Acácio Pereira, que viria a ser sócio majoritário do Barriga Verde.

O MDB era a forma de os militares negarem a ditadura. Na medida do possível o partido era oposição.

Enquanto o CN ignorou os desmandos da ditadura, considerando que Carneiro estava no partido dos militares, o Barriga Verde chegou a fazer algumas tentativas de resistência. Um poema do historiador Fernando Tokarski publicado em 1974, no auge da repressão, demonstra muito bem isso. Em geral, ambos seguiram a tendência de alienação da grande imprensa.

 

BOXMarchando com Deus, pela família e liberdade

A imprensa canoinhense pode até ter influenciado o povo, mas não foi a única responsável pela adesão ao golpe. No dia 27 de maio de 1964, centenas de moradores da cidade saíram às ruas para prestar apoio ao governo militar. O convite para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade partiu do próprio prefeito à época, João Colodel, e da Câmara de Vereadores. O evento era uma réplica do que vinha ocorrendo em várias capitais brasileiras.

A Marcha, segundo o CN, era “em homenagem à Revolução Democrática do dia 31 de março e que apontou à Nação nossos patrícios que agiam clandestinamente contra o nosso país sob a égide do Partido Comunista.”

A Marcha canoinhense não se limitava a apoiar o regime. “Houve apoio financeiro, por meio de doações de joias de senhoras da sociedade”, conta o ex-prefeito Alcides Schumacher, que assumiria a prefeitura no período mais repressor da ditadura.

O ex-prefeito conta que durante seu governo (1970-1973) recebia visitas de militares pedindo informações sobre supostos subversivos. “A pressão foi muito grande, no sentido de obter informações de pessoas da comunidade. Eles queriam saber sobre educação, professores, diretores e também sobre religiosos”, conta. Quando não aparecia um militar em seu gabinete, vinha um formulário para Schumacher preencher com os nomes dos contrários ao regime que poderiam influenciar a população. “Mas eu resisti. Saí-me bem, não prejudiquei ninguém”, afirma.

Schumacher, inclusive, enfrentou os militares ao entrar com uma ação judicial contra o Estado para receber dividendos do Imposto sobre Vendas e Conciliações (IVC). “Recebi pressão por parte de um general do Exército para retirar esse processo, mas não retirei”, conta. A ameaça falava em “consequências”. Anos depois, o então prefeito José João Klempous receberia, finalmente, esses dividendos.

 

 

DITABRANDA

O termo que provocou furor contra a Folha de S. Paulo pode ser usado para descrever o impacto da repressão em Canoinhas. Não há notícias de pessoas mortas ou agredidas por atos de subversão. “Não podia haver formação de grupos nas ruas, disso me lembro, mas ninguém desapareceu ou coisa parecida”, conta Schumacher.

Na região, no entanto, houve desaparecimentos. O pai do professor Arlindo Costa, de Mafra, saiu de casa para uma viagem e jamais voltou. Crítico ao regime e como professor, há tempos ele vinha sendo visado pelos militares.

O livro Brasil: Nunca Mais, um verdadeiro tratado do Dom Paulo Evaristo Arns sobre desaparecidos da ditadura, registra dois casos de pessoas que foram presas no 5º Batalhão de Engenharia e Combate, em Porto União, que jamais retornaram. Um deles também era professor. “Toda a cidade tinha olheiros. Aqui (em Canoinhas) quem fazia esse papel era a própria Polícia Militar”, conta o historiador Fernando Tokarski.

O poder da Polícia Militar, por sinal, foi ampliado. Com carta branca do Governo, muitos cometeram atitudes arbitrárias ao longo de duas décadas.

 VEJA MAIS

Recortes de jornais à época mostram como repercutiu o golpe em Canoinhas

ADAÍR DITTICH: O cerco à vila

ARTIGO: O golpe e o realismo de Golbery

Bianca Neppel escreve sobre ditadura e democacia

Tudo sobre o Golpe de 64

Especial 1964

Rolar para cima