Entre os canais Bruges e Amsterdam

Nova coluna de Adair Dittrich                                                                                                                 

Foi em um dos primeiros trens que de Bruxelas seguia para Bruges na manhã seguinte que nós embarcamos. Bruges, a cidade medieval a beira-mar plantada no país de Flandres.

Alberto e Ana deixaram-nos na gare central de Bruxelas e rumaram de volta para Ahrweiler, na Alemanha.

 Bruges
Bruges

Depois de com eles estarmos por tantos dias senti um vazio a meus pés, sentimo-nos como órfãs abandonadas à própria sorte.

Menos de uma hora depois desembarcávamos na estação ferroviária de Bruges, onde, em um guarda-volumes deixamos nossas mochilas.

Uma cidade diferente a nossa frente. Logo ao descermos do trem senti como se, repentinamente, eu transpusesse um portal do tempo e um cenário medieval se abrisse a minha frente.

Deixamos a estação e saímos a caminhar pelas ruas de pedras batidas sem saber para onde olhar primeiro, sem saber para o que olhar primeiro.

A língua falada em Bruges é o flamengo, a língua do país de Flandres. E, como em outras ocasiões já havíamos feito, com um mapa nas mãos e um definido roteiro na mente, fomos cruzando ruas e becos, pontes e canais.

Lembro-me de que eu me sentia como se estivesse em um cenário de um romance histórico, cruzando verdadeiros labirintos cavados em rochas onde o turbilhão das ondas do mar se ouvia.

Parecia-me estar em uma cidade enfeitada por casas semelhantes a castelos em miniatura. Inúmeras casas que se espalham por aquelas ruas de pedras por onde desfilam ainda inúmeras charretes. Imaginem o inusitado.  Cocheiros sentados nas boleias das charretes usando chapéus de feltro de abas largas e plumagens.

Não é então um cenário de romance histórico?

 Bruges
Bruges

Bruges está instalada em meio a inúmeros canais. Arborizados nas margens. Com majestosos cisnes de branca plumagem deslizando em suas águas. Carregados de barquinhos.Pena que não tínhamos tempo para neles navegar.

Foi um contínuo caminhar. Foram horas de um curioso olhar fixar-se em cada construção, em cada detalhe. Olhar apenas. Sem tempo de em tudo entrar. E conferir. Andamos pelo Grote Markt onde vimos o imponente Lakenhalle e a Torre Belfort e seu fenomenal carrilhão.

Prefeitura de Bruges/Divulgação
Prefeitura de Bruges/Divulgação

Houve tempo para um breve lanche. Na calçada de um café. Para que se pudesse continuar vendo o mundo passar. Para rabiscar alguns cartões postais e registrar para a vida a minha passagem por lá. E ao rever aquele que para minha mãe enviei relembro dos diferentes estilos arquitetônicos dos belos edifícios que na Praça Burg se encontram. Em estilo gótico a sede da prefeitura, em estilo renascentista o Brugse Vrije (Liberdade de Bruges) e ainda a Heilig-Bloedbasileik (Basílica do Sagrado Coração) são os edifícios que em minha mente ficaram.

Encerramos nossa caminhada na gare de Bruges onde apanhamos nossas mochilas e tomamos o trem rumo a Amsterdam.

Campo de tulipas na Holanda/Arquivo
Campo de tulipas na Holanda/Arquivo

Foram mais de três horas percorrendo um panorama diversificado. O colorido dos imensos tapetes de flores que se perdiam nos planos horizontes. Primeiro as begônias em jardins sem fim tomando conta dos campos da Bélgica. E depois, na Holanda, as tulipas. Plantações de tulipas que levaram o nosso olhar ao infinito aonde as suas cores se misturavam com as cores do crepúsculo do entardecer.

E dentro do trem a sensação de ouvir, na distância, o barulho do mar. O mar que desde Bruges, dos longes nos espreitava.

Desembarcando na Amsterdam Centraal logo procuramos uma agência de câmbio porque necessária era a moeda do novo país. E uma tenda onde escolhemos um hotel que não fosse distante da gare. Munidas do respectivo mapa lá fomos nós para uma primeira noite, em um hotel, longe de nossos amigos.

E saímos então pela noite holandesa, pela tão decantada noite de Amsterdam. Jantar era preciso depois de nosso curto e rápido lanche em Bruges.

Agitada noite. Plena de sons. Cheia de músicas. Com danças nas ruas. Com músicos exibindo seu virtuosismo. Com grupos de rock. Com violinistas clássicos.

Nossa estafa não permitiu que ficássemos desfrutando, por longas horas, a toda aquela festa cosmopolita.

Amsterdam
Amsterdam/Arquivo

O amanhecer do outro dia já nos encontrou dentro de um bonde e por horas riscamos a cidade nas mais variadas direções. Sendo um lento veículo pudemos apreciar Amsterdam em seus mais variados aspectos. Em alguns pontos de maior interesse descíamos. E foi assim que paramos em um ancoradouro de barcos e pudemos nos deleitar em um breve passeio pelos famosos canais.

Mas o imperdível, o indispensável era, para mim, conhecer dois dos mais fantásticos museus da Europa. Primeiro fomos ao Rijkmuseum, onde, entre as obras de tantos outros pintores de renome, estão as de Rembrandt. E então eu pude me deslumbrar com as telas de uma época onde as tonalidades escuras predominavam.

Museu van Gogh/Divulgação
Museu van Gogh/Divulgação

E de sobremesa, o Museu van Gogh. Onde as mais reprimidas emoções escondidas no recôndito de minha alma extravasaram em lágrimas contínuas. Fotografias e ou reproduções das pinturas desse incompreendido gênio jamais haviam entrado tão fundo em mim como aconteceu ali em frente às originais.

Ver “O semeador”, “Auto Retrato”, “Os Girassóis”, “Trigal com Corvos”, “As Planícies de La Crau”, entre tantos mais que em minha mente se desenham a cada passo.

Somente a tela original, olhada de perto ou analisada de longe consegue transportar nossa alma para infinitas dimensões. Fisicamente estática, em devaneio diante daquelas pinturas de van Gogh, eu senti meu espírito ser arrebatado para outras esferas.

E naquele espaço imenso, carregado da arte de quem em sua vida não foi compreendido, passou-se bem lá dentro de mim a imagem de outros gênios que conheci. Gênios da arte de escrever, artistas que com suas penas escorriam sua alma em qualquer papel que pela frente encontrassem.Gênios que, como ele, foram desprezados em vida. Gênios que, como ele, tiveram o seu depressivo estado mental como barreira para a expansão e a disseminação de sua arte.

Abruptamente deste devaneio fui despertada ao ouvir que pelo meu nome alguém chamava. E, daquele arrebatamento, das alturas por onde andava, quase fui ao chão ao perceber onde estava,quando me deparei com minha amiga ao lado a me dizer que as portas do museu logo iriam ser fechadas.

Feliz eu fui, alguns anos depois, quando, em outra viagem pude passar um dia inteiro a perambular e a divagar pelos corredores e galerias desses dois museus de Amsterdam.

Pelas ruas a arte continuava. Obras de anônimos artistas debruando calçadas. Obras de arte nas ruas por onde veículos não passam, artistas impregnam, com tintas de colorido forte, verdadeiros painéis a nossos pés. Efêmera arte que em horas se desfaz. Efêmera arte com bonés em cada canto a receber moedas de fortuitos admiradores. Efêmera arte que logo fenece e jamais se encontrará com as tintas que tingem os céus no crepúsculo de cada amanhecer.

amA noite na cidade tão cheia de sons e de alegria foi por nós desfrutada em vários locais. Depois do jantar, em mesas nas calçadas, onde palhaços passavam para nos fazer rir, onde mágicos demonstravam suas técnicas, onde malabaristas exibiam seus membros que, eu creio, só de cartilagens e gelatina foram feitos, entramos num aconchegante local para ouvir música em quase surdina. E onde fomos surpreendidas com garçons que a nossa mesa não paravam de chegar trazendo bilhetes escritos nas mais variadas línguas. Bilhetes acompanhados de borbulhantes taças de champanhe. Que, obviamente, com sorrisos agradecíamos. E que, gentilmente devolvidos eram. Bilhetes e taças …

O próximo amanhecer nos encontraria em um trem rumo a Colônia, na Alemanha, onde a amiga Ana estaria nos esperando.

 

 

 

 

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