Leia nova coluna de Adair Dittrich
Enquanto nos encontrávamos nas dependências da St. Josefs Haus em Gaissau seguíamos o seu ritmo de vida. Regulávamos, no entanto, os horários do nosso café da manhã com o horário dos trens que tomávamos em Rheineck Bahnhof para as nossas incursões em torno das margens do rio Reno.
Acordar, assistir à Missa, tomar o café, fazer a sagrada visita à Irmã Maria Carolina Goss em seus aposentos era o nosso ritual de cada manhã … se, na madrugada já não estivéssemos na estrada.

A St. Josefs Haus é um lar para idosos. E de repouso. Na capela, durante a Missa, e pelos corredores encontrávamos muitas vezes os hóspedes que daquela casa faziam seu mundo. Definitivamente, para alguns. Temporariamente, para outros. Alguns em cadeiras de rodas conduzidos por familiares que os visitavam ou por cuidadores que faziam parte do estafe da casa. E alguns havia que de seus aposentos nem sair mais podiam.
Notava-se que eram pessoas de uma cultura muito elevada pelos diálogos que com muitas delas pudemos manter. E deveriam ser bem abastadas também. O que se percebia pela elegância não só de suas roupas como também pelas dos filhos e netos que os visitavam. E ainda pelos automóveis de luxo que, no local destinado aos visitantes, estacionados ficavam.
No decorrer do café da manhã falamos de nossa intenção de tomar um teleférico e com ele subir a uma montanha com neves eternas. Quase um susto generalizado nas faces das freiras mais idosas eu vi. Elas devem ter pensado que pretendíamos esquiar …
Com mil e uma recomendações sobre os cuidados que deveríamos ter com os trechos escorregadios sobre a neve, com os sibilantes ventos e com a promessa de bem nos agasalharmos nos nevados cumes, entregaram-nos uma provisão de trajes apropriados para alpinismo.
E lá fomos nós carregando mochilas onde constavam as indumentárias para uma gélida aventura nas montanhas. Além de botas próprias para se andar na neve, com pinos em seu solado, mais grossos gorros, meias e luvas de lã e agasalhos que eram verdadeiros cobertores faziam parte de nosso carregamento.
Aceitamos, claro, as recomendações e a parafernália que as nossas costas quase curvava. Como não aceitar a voz da experiência?
À medida que o nosso trenzinho aéreo ganhava altura o ar rarefeito ia sendo sentido. Mas o vagão era aquecido. E nos deixou dentro da montanha. Com ventos carreando a neve para dentro também. Mas automaticamente abre-se uma porta. Logo que se entra ela se fecha. E então ficamos num recanto aquecido, num buraco dentro do monte. Cheio de gente que espera sua vez para descer. Que espera sua vez para da caverna sair e nas neves lá fora deslizar.
Nem havíamos sequer pensado em pôr a cabeça para a brancura que através de outra porta se via fomos sendo barradas com um sério aviso. O aviso de colocarmos a indumentária apropriada para a intempérie que do lado de fora enfrentaríamos. Tiramos nossas mochilas dos ombros e demos início à solenidade da paramentação.
Saímos então da caverna e fomos fazer nosso dificultoso passeio pelo cume nevado. Pessoas deslizando em seus trenós, em seus esquis ou, como nós, apenas dando alguns passos e se deslumbrando com o panorama. Incrível. Sem saber como descrevê-lo. Uma fantástica sucessão de cores e relevos. Apesar do fustigante vento que paredões de neve a nossa frente levantava o que se via entre os raios do sol eram imagens que as mais lídimas emoções na alma em cascatas irrompiam.
E valeu todo o esforço e todo o sacrifício de em nossas costas haver carregado aquele pesado fardo. Pudemos nos deleitar do lado de fora bem mais que alguns poucos minutos e dar bem mais que alguns poucos passos e até soltar de nossas gargantas, solenemente, o famoso grito das montanhas, o lodelai dos tiroleses.
Mesmo com toda aquela indumentária, geladas retornamos ao interior da montanha. E, enquanto aguardávamos o próximo bondinho para a descida rumo ao vale, uma fumegante xícara de chocolate e uma taça de um rutilante vinho acompanhados de um queijo quente propiciaram o aconchego pelo qual meu corpo ansiava.
Já no vale fomos em busca de um local para almoçarmos. Descobrimos um aprazível recanto. Um barco-restaurante já definitivamente ancorado às margens de um dos pequenos lagos que por toda a região se entrelaçam. Onde saboreamos um delicioso e fino peixe naquela manhã das límpidas águas da beira retirado. Acompanhado com a típica batata dos Alpes, a batata suíça.
Na hora de pedir a conta chamei a garçonete e a ela fiz em legítima e pura língua alemã a pergunta aprendida algumas semanas antes com uma amiga de Florianópolis que conhecêramos no aliscafo de Budapeste a Viena. A pergunta que ela me ensinara após jantarmos no restaurante da Westbahnhof de Viena:
“Bitte, was kosten?”
E, na esperança de que a moça me apresentasse a nota com o valor em números eu fiquei. Não! Ela nos deu o preço em alto e bom som, oralmente, em fluente alemão. Que eu nada entendi. Claro! Então expressei-me naquela universal linguagem dos gestos. Fui entendida e a notinha com os francos suíços em números bem desenhados a nossa mesa chegou.

Como sempre ríamos de tudo, às gargalhadas saímos para as nossas incursões pelos arredores. Com um roteiro e um mapa às mãos tudo pode ser visto e captado em poucas horas. Pequena sempre é a distância entre um local e outro. Andávamos um trecho em trem, outro em bondinhos e muito a pé. Foi assim que várias vilas e aldeias conhecemos. Foi assim que a Appenzell chegamos.
Appenzell fica na região de Alpstein no meio de imponentes formações rochosas. Um rendilhado de montanhas a envolve. Andar pelas ruas desta pequena cidade foi como se dentro dos contos de Grimm andando estivéssemos. Tortuosos e íngremes caminhos levando-nos a encantados locais.
Rendilhadas placas em ferro fundido, pintadas em múltiplas cores no frontispício de lojas, cafés, joalherias, confeitarias, restaurantes e hotéis. Com seus nomes em bem desenhadas letras góticas.
Um encantamento é o se ver os desenhos e as pinturas nas vidraças das casas e dos prédios. São verdadeiras obras de arte pelas ruas expostas.

De Appenzell fomos até Trogen, outro pequeno burgo entre as montanhas incrustado. Nossa finalidade era conhecermos a famosa Kinderdorf Pestalozzi, algo de interesse de minha companheira de viagem, Jucy Seleme, pedagoga emérita que era. De Trogen a Kinderdorf não levamos mais de quinze minutos a caminhar por entre sinuosos trechos, ora relvados, ora coberto com miúdas e coloridas pedrinhas.
E então chegamos à cidade das crianças. Muitos prédios a se perder de vista em um platô na beirada da montanha. Uma cidade onde crianças são acolhidas nos meses letivos. Mas a estação era de férias. E poucas crianças lá se encontravam. Entre estas um garoto de tez bem escura e negros e crespos cabelos. Trazia um enorme sorriso mostrando a brancura de uns dentes que de longe se salientavam em sua negra face. E que falava um português com um sotaque carregado já nos erres. De imediato sentimos a empatia que entre os nossos olhos presente se fez.
Era um brasileirinho que lá morava e estudava. E, fraternal e maternalmente, por um indefinido tempo o aconchegamos em nossos braços.
E o garoto disse-nos que estava muito feliz naquele educandário infantil. Que de lá não queria sair. Que tinha amigos. Que era um mundo de sonhos e onde do mundo muito estava a aprender.