Leia nova coluna de Adair Dittrich
O tempo em viagem na escuridão da noite, adentrando as névoas da madrugada, entre o mergulhar em profundo sono e o acordar para a troca de um comboio terrestre para um comboio marítimo, foi um tempo que a minha memória arquivou sem o enunciado de números.
Lembro-me, apenas, que no Buffet Paris de nossa gare de embarque saboreei meu último Camembert e minha última taça de Beaujolais em terras francesas.
Lembro-me, também, que as onze badaladas da noite já soavam na longínqua Notre Dame quando nosso comboio corria celeremente em direção ao porto de Le Havre.
Era uma brumosa e gélida madrugada quando, no trem que nos levaria a Londres, embarcamos. Há mais de quarenta dias pela Europa Continental sempre viajáramos em vagões de primeira classe. E agora, naquela brumosa e gélida madrugada acomodadas estávamos na segunda classe indo da costa sul da Inglaterra até Londres. E, estranhamos, e muito, a nossa nova condição. O nosso Europass não era válido nas Ilhas Britânicas. As poucas horas de viagem que nos restavam fazer não compensavam o valor cobrado para se esnobar em primeira classe. O frio era intenso e meus agasalhos de inverno na mala se encontravam. E dizer que lá ainda era verão… Foi, então, que eu entendi a brincadeira de amigos que antes de viajarmos nos diziam:
“Verão na Inglaterra, para nós, é apenas a terceira pessoa do plural do futuro do verbo ver!”
Foi, ainda, em meio a esta névoa e a este frio que ante nós surgiu Victoria Station, a monumental estação de trens e de metrôs de Londres, onde desembarcamos.
Era um diferente panorama o que ali se via. Diferente em estilos, diferente em língua, diferente a moeda. Mas, embora a algaravia de em um amontoado de idiomas se misturasse, a língua inglesa predominava.
No bureau de turismo e informações escolhemos um hotel que a poucos passos da estação se situava. E, na banca de câmbio libras esterlinas fomos adquirir com nossos dólares.

Foi curto o tempo decorrido entre a chegada à Victoria Station e a entrada em nosso hotel. No entanto, como aquela manhã apenas se encontrava em seu início só poderíamos dar entrada em nossos aposentos após o meio dia.
O hotel era amplo. Espaçoso saguão. Permitiram-nos o uso dos sanitários do salão da recepção. Onde, até uma ducha quente pudemos tomar. E transformar nossas cansadas figuras em algo mais apresentável. E, assim aquecidas, revigoradas e metamorfoseadas pudemos, no salão de refeições tomar o nosso primeiro café da manhã, perdão, o nosso primeiro chá da manhã em terras inglesas. Com direito a creme de leite, torradas, manteiga e geleia.
Deixamos nossas bagagens na recepção. Quer dizer, minhas bagagens. E saímos para as nossas primeiras aventuras londrinas. Na própria Victoria Station tomamos o metrô que nos levaria aos territórios que a minha imaginação há anos antevia.
E a primeira coisa a se fazer. Procurar a agência da Varig para pegar nossos novos bilhetes de viagem. Que guardados ficaram em nossas pochetes, aderidas ao corpo, junto aos nossos passaportes e nossos últimos dólares.

Caminhamos pela Wall Street, fomos até Pall Mall e deslumbramo-nos com o verde em tantos muros e paredes. Passamos pela Trafalgar Square e o soberbo monumento em honra ao Almirante Nelson com aqueles magníficos leões em sua base. O Parlamento ao largo.
E entre caminhadas a pé e outro tanto em metrô chegamos ao Buckingham Palace no instante exato que antecede à famosa e solene troca da guarda da Rainha. Assistir, em local privilegiado, o marchar sincopado dos oficiais que entram e dos oficiais que saem. Ouvindo os clarins. Ouvindo os tambores.

Não muito longe dali, em um Pub, nos acomodamos. Para algo comer. E uma cerveja de pressão, que dos porões fluía bem fresquinha e quase gelada, para beber.
Como nossa estadia em Londres ficara reduzida devido aos contratempos na gare de Paris, pouco, muito pouco poderíamos apenas vislumbrar ao longe dentro do muito que pretendíamos ver.
Continuamos nosso caminhar pelo roteiro que, há muitos anos, eu, em minha mente, havia já traçado. Por ocasião de um Congresso Mundial de Anestesiologia que naquela metrópole tinha sido realizado, eu recebera fôlderes, mapas e descrições, em detalhes, de roteiros e locais a serem visitados. Claro que não fora possível aquela viagem. Mas, com tudo aquilo ainda pululando em minha cabeça, fácil tornou-se o locomover-me por Londres como se eu já a conhecesse.

E nesta caminhada passamos defronte ao quartel dos garbosos oficiais da Cavalaria Britânica. Claro, não há como não parar ao lado deles para uma foto. E claro, também, por mais que se brincasse e sorrisse, continuavam eles impávidos, sérios, como estátuas lá plantadas.
Uma rápida visita à Torre de Londres, à macabra Torre de Londres de tantas torturas que a história nos conta desde remotas épocas.
Passamos ao largo dos jardins e parques que margeiam o Tâmisa. No intervalo do almoço repletos estavam de pessoas que, com suas sungas e biquínis, aproveitavam o sol do verão londrino.
Não sei quantas pequenas xícaras de café expresso eu tomei por aqueles caminhos por onde andamos. Nem pensava no alto preço. Precisava era ficar em pé e acordada para muito em pouco tempo desfrutar. Eu teria a vida para descansar depois…

E entre tanto a se ver, algo dentro de mim gritava ser imprescindível. Fomos então até o West End de Londres. Ao teatro onde o musical dos meus sonhos estava se desenrolando. Fomos em busca de uma tentativa de aquisição de ingressos para assistir “Cats”. “Cats”, o musical de Andrew Llyod Webber do qual faz parte a inigualável “Memories”, já então imortalizada por Barbra Streisand.
A fila era imensa. Não para a compra de ingressos. Era a fila de espera das desistências. Em uma sala a parte ficamos. No chão, sentadas, esperávamos. O tempo corria. Quanta coisa a se ver em Londres e nós, ali, na boca de espera. Eis que chega ao nosso lado alguém atraído por nosso linguajar português. Que, como nós aguardando por um ingresso estava. Era um bem apessoado e bem falante executivo conterrâneo nosso que se propunha ao nosso lado ficar na fila de espera.
Já acostumado com o sistema da venda de ingressos de grandes espetáculos nas metrópoles do mundo lá foi ele atrás de onde tinha certeza poder desentocar alguma coisa. E retorna com uma irrecusável proposta. Alguém se dispunha a se desfazer de seus ingressos e nos repassaria por um valor bem acima do estampado nas bilheterias oficiais do teatro.
Claro que aceitamos. Nosso amigo conseguira os três ingressos. E todos na mesma fila. Como os ingressos seriam para a primeira apresentação daquela noite tínhamos o exato tempo de tomarmos um taxi e corrermos para o nosso hotel a fim de nos prepararmos para aquela emocionante noite.
A sala do teatro tinha quase o formato de uma arena. Lá sentados estávamos, em transe, aguardando que o espetáculo tivesse início. As badaladas finais para que as cortinas do palco se abrissem já haviam sido ouvidas. E nada lá em frente acontecia.

Mas um borborigmo diferente a nossa atenção chama. Silenciosamente, sorrateiramente, eles vão aparecendo. Infiltrados em meio à plateia. Eles e elas. Os gatos e as gatas. E irrompem os primeiros acordes da orquestra.
E se ouvem as primeiras frases cantadas. Magnífico coro. Magníficas vozes. E Elaine Paige encanta com sua cristalina voz que ressoa pelo ambiente todo.
“Memories”, quase ao final, é a melodia que a plateia canta junto. É a melodia que em meus ouvidos e em minh’alma pela vida ficou.
Após o espetáculo fomos em busca de um restaurante. Porque jantar era preciso. E com um vinho francês comemorar a noite e relembrar trechos de “Cats”. Animada ia a conversa quando percebemos que a garrafa de vinho ficara vazia. Pedimos outra ao garçom. Que, solenemente, empertigadamente, com a maior gentileza diz que já não mais nos poderia servir outra garrafa. Ante a nossa estupefação ele, simplesmente, olha em seu relógio de pulso e nos diz:
“Já se passaram cinco minutos das onze horas da noite. É a lei!”
Sim. Lá esta é a lei. E é cumprida.
Tomamos água para completarmos a noite.
Porque na Inglaterra esta é a lei. Cumpra-se.