Leia a crônica da semana de Adair Dittrich
Éramos um grupo de médicos anestesiologistas de Santa Catarina fazendo um curso preparatório para a obtenção do Título de Especialista. Estávamos em nossa ilha da magia. E o Presidente da Associação Médica de nosso estado, em sua fala, na aula inaugural, profere a frase mais verdadeira, pelo menos para a época, sobre a nossa profissão.
“Médico só tira férias quando vai a Congresso”.
Ou seja, médico só tirava férias de sua labuta quotidiana para um aperfeiçoamento, para um aprimoramento nas coisas de sua profissão.
E assim eram as minhas férias. Durante longos e longos anos. Os congressos e os cursos de atualizações não apenas me conferiram a oportunidade de evoluir em minha especialidade, como, também, a de conhecer quase todas as capitais de meu país e também mais algumas de outros países.
Entre tantos, talvez, o mais pitoresco tenha sido a viagem que eu fiz para o congresso de anestesiologia em Recife.
A programação começara já um ano antes em conversas entabuladas nos intervalos das palestras e mesas redondas de jornadas e congressos. Surgiu então a ideia de se conseguir um navio que para o nordeste fizesse a viagem na data aprazada. Pelo grande número de participantes que do sul e sudeste partiriam seria um navio exclusivo para o nosso evento. Que nos levaria desde Santos, no litoral paulista até a capital pernambucana.
E assim foi feito. O Ana Nery, um dos Cisnes Brancos da antiga Navegação Costeira, foi a nossa casa flutuante durante muitos dias. Não só no decorrer da viagem. Serviu, também, como nosso hotel durante o congresso em Recife.
Dias antes do embarque eu seguira em meu Karmann Ghia vermelho para o Rio de Janeiro. Para atualizar o meu todo. Para adequar meu guarda roupa ao clima nordestino. Sim, porque estávamos aqui com aquele céu enevoado e nevoento, com cor de tempestade e os resquícios dos frios invernais. Cobertos de pesadas roupas dos pés à cabeça, embolorando fechados ficávamos, entre quatro paredes, para não sermos castigados pelas intempéries próprias de nosso friorento sul. E eu precisava me preparar para o ensolarado nordeste.
O embarque no Ana Nery foi no cais do porto do Rio. Onde já se sentia uma prévia das festas que teríamos durante a grande jornada. E, mal embarco, já vou encontrando, no primeiro convés, os velhos amigos de Santos, da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Que, angustiados tinham ficado ao não me ver com eles embarcando na orla santista.
E lá fomos nós a singrar os verdes mares de nossa maravilhosa costa rumo ao nordeste.
Quem já cruzou os oceanos em um navio sabe do empenho da tripulação em fazer com que ninguém se sinta entediado. E o pessoal incumbido para esta missão arquiteta mil e uma brincadeiras no correr dos dias, mil e uma festas no correr das noites.
Mas, para a nossa turma de congressistas parecia que aquilo tudo ainda era pouco.
Existe um dia oficial em que o comandante convoca todos os passageiros para um treinamento de sobrevivência em caso de naufrágio. Todos devem entrar nos botes salva-vidas. Colocar os coletes. E seguir todas as instruções previamente em detalhes explicada em uma palestra e enfatizadas depois em panfletos muito bem elaborados.
Mas, havia algo a mais. Algo desconhecido do comandante e da tripulação.
Eles não sabiam que quem estava a bordo era um bando de pessoas que leva uma vida carregada de tensões. Que vive no limite do estresse em todas as horas do dia. Que até quando repousa e dorme sente os sobressaltos de uma vida vivida sobre o fio de uma navalha.
Eis que centenas dessas pessoas se juntam para o relaxamento do corpo, da mente e do espírito. Artes e artimanhas começam a vicejar. De ouvido a ouvido espalha-se entre os menos avisados a notícia de uma grande aventura. De um desembarque em Abrolhos. A hora marcada era o momento designado para o treinamento de sobrevivência em caso de naufrágio. Os botes salva-vidas seriam baixados até ao nível do turbulento mar e seguiriam depois rumo aos penhascos do decantado arquipélago. Iríamos nos deslumbrar bem de perto com o visual de enormes ondas chocando-se de encontro aos rochedos. E não sobrava ninguém que não quisesse conhecer Abrolhos.
No dia aprazado, na hora marcada, Abrolhos à vista, simbolicamente quase ao alcance de nossas mãos. Foi aquela correria. Todo mundo a precipitar-se rumo aos botes salva-vidas. Com os coletes já apertados ao tórax. Todos queriam ser os primeiros a desembarcar. Todos os que acreditaram na fantástica aventura. Menos os autores da farsa.
E os botes não saíam do lugar. Os botes não desciam rumo às turbulentas águas. E Abrolhos ali, saltando aos angustiados olhos de todos. E o navio nada de diminuir a velocidade. Nada de parar. Nada de ancorar.
Pessoas de todas as idades aglomerando-se no convés, aguardando a sua vez para a espetacular descida e tomar o caminho rumo a Abrolhos.
Um grupo que estava perdendo a paciência foi logo falar com o Imediato. Que o enviou ao Comandante. Que nada sabia sobre a malfada incursão aos rochedos do arquipélago.
Foi então que o nosso professor emérito, chefe de uma equipe de anestesiologistas, chefe de um Centro de Ensino e Treinamento de nossa especialidade, se apresentou, com a face mais séria do mundo, e confessa ao comandante a autoria da inusitada façanha. Que o fizera apenas para que nós nos desafogássemos do estresse da vida. E assim, como bom chefe, assumiu sozinho a autoria do crime. E não nos delatou como seus cúmplices.
Nosso castigo foi, no jantar de gala daquela noite, sermos incluídos, em lugar de honra, na mesa do capitão-comandante!