A aventura de uma médica de interior (I)

Leia primeira parte da crônica de Adair Dittrich                                                                                      

 

Hoje eu passo a vocês a primeira parte de um dos capítulos que compõem um romance meu. Romance que, talvez, seja publicado antes do fim do ano que vem. Este capítulo conta uma aventura vivida por uma médica nos anos sessenta do século passado. Aventura que o namorado dela contaria, anos depois, ao confidente amigo João.

João, tu não fazes ideia do que se passava dentro de mim, não fazes ideia dos vulcões que explodiam no meu âmago só ao me lembrar de tudo o que Alícia passara, naqueles gélidos confins, em uma noite, atolada no barro vermelho.

Eram sulcos de lama vermelha descendo colina abaixo em minha alma.

E quando eu a encontrava assim coberta de gélida lama vermelha por estar atendendo aquele povo coberto de lama vermelha eu jurava para mim mesmo que no dia seguinte daqui eu sairia e a carregaria comigo.

Eu queria levá-la para uma cidade limpa, uma cidade clara, uma cidade de sol, uma cidade de asfalto, uma cidade de luz, para uma cidade onde ela pudesse desenvolver sua arte e sua ciência médica.

Mas é preciso que eu te conte mais este pedaço, amigo, este pedaço que muito remorso me trouxe e que de minha memória não sai. Este pedaço que remorso ainda me traz por não haver tomado de imediato uma decisão. Por não ter tido coragem, João, por não ter tido a coragem de sair daqui e carregá-la comigo.

O inverno chegara audacioso. Noites gélidas. Manhãs enevoadas. Muita chuva. O sol pouco aparecia.

Alícia morava na casa de meu mano Cilo que era o prefeito.

E numa certa manhã clientes de Alícia queriam saber o que acontecera pois o consultório estava fechado e na casa do seu Cilo ninguém atendia.

Já passava das dez horas da manhã. Corri à casa de meu mano para saber o que estava acontecendo.

Ele viajara a serviço do município. A empregada tinha ido fazer compras. Minha cunhada dormia, talvez, pelo efeito da medicação de que fazia uso, talvez, pela noite mal dormida.

E Alícia…

Alícia estava em seu quarto, sozinha, delirando… a cor de sua pele era de um branco-azulado, gelada… com a roupa encharcada… com a roupa encharcada de lama vermelha…

Não sabia o que fazer. Não havia fogo no fogão. Nem lenha. Fogão a gás inerte. O gás havia acabado.

A quem recorrer? A quem pedir socorro? Dr. Pedro estava viajando. Pedi que chamassem Dona Laura. A velha amiga Dona Laura que sempre socorrera Alícia em seus dias de tristeza… que as lágrimas de Alícia aliviava com seu sorriso. Dona Laura veio correndo. Enrolamos Alícia num cobertor e eu e meus amigos a colocamos num jipe e a levamos até o Hospital.

Aquecê-la era preciso. Tirar as roupas que eram uma gélida lama vermelha só. Tirar o vermelho gélido que a envolvia por inteiro.

O desvelo dos colegas de Alícia e das auxiliares de enfermagem logo fizeram com que suas cores retornassem. Mal conseguia engolir o chá quentinho que Dona Laura lhe ministrava em colherinhas.

Horas de angústia nossa se passavam. O dia estava findando quando Alícia conseguiu, enfim, falar. Balbuciava alguma coisa. Que mal ou pouco entendíamos.

Mas os colegas dela pediram que a deixássemos repousar. Que não insistíssemos em fazê-la contar o que havia acontecido. Ainda estava febril. Fazendo uso de antibióticos intravenosos. Com agulhas em suas veias a transfundir soro.

Dona Laura insistiu em levá-la para a casa dela. Que a manteria aquecida. Que tinha um aquecedor a gás. Assim mesmo os médicos optaram em deixar uma auxiliar de enfermagem cuidando dela no decorrer da noite.

Ficou instalada no mesmo quarto onde tantas vezes já tinha ficado. Era o quarto das filhas do casal. Espaçoso, arejado e com grande janela dando para o lado do sol nascente.

Eu fiquei também. Até disse para a moça que deitasse na cama ao lado e que eu ficaria recostado na poltrona. Que a acordaria na hora de ministrar a medicação. Que a acordaria na hora dos cuidados que a ela deveriam ser dispensados. Ali era eu apenas um espectador expectante. Sem coragem de nela aplicar sequer uma injeção intramuscular.

Quando o novo dia despontava no horizonte acordei, subitamente, sobressaltado, com o leve ruído que ouvia, com sussurros ao lado… Havia cochilado na madrugada e nem sabia onde eu me encontrava.

Alícia no leito sorria e agradecia à auxiliar de enfermagem pelos cuidados todos. Dizia que estava bem. Apenas com uma grande lassidão. Que os braços lhe pesavam muito. Mas não sentia dores e nem frio. Pudera! Com aquele aquecedor a noite inteira ligado…

Logo chega dona Laura com uma colorida bandeja. Com suco de laranja, com gelatina, com frutas, com torradas, com geleias e com um fumegante café cujo aroma me trouxe as mais gratas lembranças de minha infância.

E Alícia deleitou-se com o suco que quase sorveu de um gole só. Comeu a gelatina bem devagar, quase se engasgando. Tomou o café. Conseguiu engolir dois pedaços de mamão e nem mexeu nas torradas. Agradeceu tudo e disse que comeria mais tarde.

Mas os nossos olhos ansiavam pela história. Precisávamos saber, do ocorrido, tudo.

Depois do café e depois do banho que Alícia fez questão de tomar sozinha, afirmando que estava em condições de fazer a sua própria higiene, fomos para a cozinha, onde, no grande fogão de lenha, crepitava um aconchegante fogo.

Então ela nos contou a sua grande aventura. Aventura que tivera início logo ao anoitecer de dois dias atrás.

 

(Continua)

Rolar para cima