Leia a terceira parte da crônica de fim de ano de Adair Dittrich
Alícia falava devagar, pausadamente, respirando ainda com dificuldade; com uma voz ainda meio rouca, não aquela vozinha macia e levemente rouca a que eu estava acostumado, mas, uma voz dorida.
Entre um gole e outro de um chá quentinho que Dona Laura preparara ela continuou a nos contar a história daquela longa e gélida noite passada nas barrancas do rio e na enlameada estrada vermelha.
Alícia teve que transfundir o sangue em poucos minutos; porque do choque hipovolêmico era necessário tirar, com urgência, a paciente. Se assim não procedesse haveria um risco iminente de perder o bebê.
Como ela conseguiu fazer com que aquele líquido vermelho, líquido da vida, fluísse com rapidez? Qual o artifício usado por Alícia para que o sangue corresse com mais velocidade? E ela, lentamente, foi explicando:
– Bom, numa das pontas de um equipo de coleta de sangue eu adaptei uma agulha de grosso calibre que introduzi no orifício de entrada do ar do frasco. Na outra ponta adaptei um dos tubos do esfigmomanômetro. Então pedi a uma das pessoas que lá se encontravam que segurasse o manguito firmemente e fosse bombeando a pera assim como se faz para se tomar a pressão arterial. Com isto consegui fazer que com o sangue do frasco jorrasse com maior velocidade. Não sei fui muito clara nesta explicação. Mas, creio que vocês me entenderam.
– Enquanto as coisas se acomodavam com a paciente perguntei pelo jipeiro, pois ele também poderia doar sangue. Só então sua ausência fora percebida.
– E o dono da casa foi me explicando, meio sem jeito, meio sem graça que àquela hora em que ele perguntara se iria demorar muito ainda, fora por insistência do dono da condução.
–Sabe, dona, nóis é gente simples, gente da lavora, gente da roça. A gente aqui depende de uma boa safra, de uma boa colheita. E a gente está agora meio sem fundo, meio sem condição de pagar esta corrida já, assim na hora… então ele disse que não ia ficar, assim, aqui perdendo seu tempo de descanso, assim, sem ganhar e foi embora muito brabo. Mas não ligue, não, Dona Alícia tem um outro vizinho mais longe que depois a gente acerta pra levá a sinhora de volta.
Alícia disse que nesta hora teve uma reviravolta no estômago… e se… Melhor nem pensar agora. Solucionar o caso aqui primeiro e depois as coisas se acertariam.
Começou então com as manobras necessárias para que o trabalho de parto continuasse o seu caminho da melhor forma possível.
Pacientemente, conseguiu virar a cabecinha do bebê e não demorou mais que alguns minutos para que os seus primeiros vagidos ecoassem naquele quarto. E, logo, fortemente, seu choro foi ouvido para alegria geral.
A paciente, aos poucos, foi criando cor. Sua pressão sanguínea foi se normalizando. Alícia pode então se sentar, respirar fundo e explicar para eles, em detalhes, como a paciente deveria ser cuidada. E o bebê também.
– A receita o senhor pega amanhã em meu consultório. Para agora está tudo bem. Já apliquei os antibióticos e demais medicamentos de que ela precisava. Então amanhã vocês me contarão como mãe e filho estão passando. Felizmente não houve ruptura de tecidos e pontos não foram necessários. Por favor, ajudem-me a colocar então a minha bagagem na condução que vai me levar…
Silêncio e pigarros antes que o marido da paciente tornasse a falar:
– Dona Alícia, a senhora nos desculpe mais uma vez, mas é que o peão aqui, aquele que doou o sangue foi atrás do outro vizinho que tem um jipe, mas a mulher dele disse que ele tinha ido levar umas pessoa pra uma fazenda e só volta lá por perto do meio dia…
Agora sim, o estômago de Alícia virou mesmo do avesso… Fazer o quê? Precisava retornar. De qualquer jeito, precisava retornar. Uma amiga logo entraria em trabalho de parto e ela precisava estar lá. E aquele outro senhor, tão amigo, já de idade avançada, com grave problema cardíaco. E o Dr. Pedro que dele cuidava estava viajando. Precisava estar lá de manhã, pois imprescindível a troca de dosagem de sua medicação…
Não, ela voltaria a Itacugi de qualquer forma, com qualquer tempo.
– Deixo aqui com vocês a minha sagrada sacola com todos os meus equipamentos e vou caminhando para casa. Depois, quando vocês forem ao meu consultório vocês a levam para mim…
–Mas Dona Alícia, é muito, muito longe e quase só subida, quase só pirambera.
De nada adiantaram os rogos de ninguém ali.
Sorveu a xícara de café preto e forte com açúcar, que lhe ofereceram.
E foi. Pela tenebrosa noite gelada. Pela tenebrosa noite molhada. Por uma desconhecida estrada coberta de lama vermelha. Mais estreito caminho que estrada.
Foi. Pela escura noite sem estrelas.
Foi. Pela escura noite de lua cheia escondida em grosso e impenetrável véu de nuvens escuras.
Só um pensamento a movia. O compromisso com seus pacientes. O compromisso com a vida.
Sabia o que a esperava. Vira que o jipe, com toda a sua marcha reduzida, com toda a força de tração inculcada em suas quatro rodas, com pneus de fundos sulcos, com pneus próprios para a lama, quanta dificuldade passara.
Mas ela foi. Tomou de um bordão ali mesmo no sítio e encetou a caminhada rumo à cidade. Tinha plena certeza de que, no máximo, em quatro horas faria aquele íngreme percurso de quase quinze quilômetros. Só não avaliara que havia trechos em que mais para trás que para a frente ela andaria.
Era noite de luar, mas entre a estrada e a lua quilômetros de nuvens no céu a escondiam. Era noite de luar e, embora a camada de nuvens entre a estrada e a lua, alguma coisa era possível discernir. E ela levava consigo a possante lanterna com oito pilhas grandes.
(Continua)