Viagem de fim de curso (IX)

Adair Dittrich desembarca em Bariloche                                                                                                           

 

Deveria ser em torno de meio-dia quando desembarcamos em San Carlos de Bariloche. Passáramos mais de vinte horas dentro do comboio que nos trouxera de Buenos Aires. Pensávamos encontrar um tapete de neve cobrindo a cidade. Ficara a imaginar as brincadeiras que faríamos logo que descêssemos do trem jogando bolotas de neve uns nos outros. Mas, nesse ano fora diferente do anterior quando a turma de colegas que lá estivera começara com esta guerra branca já no pátio da estação. Para ver e participar deste espetáculo era preciso ter paciência e esperar até o dia seguinte quando então a montanha subiríamos.

 

Imaginava encontrar um lençol branco de neve estendido pela cidade toda. Imaginava encontrar a neve em finíssimos flocos a esvoaçar sobre a minha cabeça. Muitos pedaços brancos, no entanto, estendiam-se por todo o caminho. Era o branco do gelo nas sombras do meio dia. Era o branco do gelo no verde das praças. O branco do orvalho congelado a emendar-se dia após dia. E o branco da neve somente mais ao longe, nas partes mais elevadas.

 

San Carlos de Bariloche, tão linda, estendida entre as montanhas nevadas e debruçada a beira dos lagos andinos. A visão é inigualável e inesquecível. Uma visão de sonhos. Dos meus mais belos sonhos.

 

Sentia-se no ar a embriaguez de todos vislumbrando o espetáculo multicolorido da cidade incrustada entre o branco da neve e o azul do céu que nas águas dos lagos se refletia.

 

Sentia-se no ar os corações a bater no descompasso dos sós. Sentia-se no ar a saudade dos amores que aqui ficaram. Sentia-se no ar a falta do afago das mãos que aqui ficaram. Sentia-se no ar a falta dos braços que lá não se encontravam para o abraço.

 

E em murmúrio dizíamos que logo para lá voltaríamos com o nosso outro eu que aqui havíamos deixado. Mas eu, para Bariloche, nunca retornei.

 

A ânsia para subirmos às partes mais elevadas da montanha não nos abandonara. Mas, preciso era ter paciência. Aconselharam-nos a deixar a aventura para a manhã seguinte. Porque as brumas do entardecer não tardariam a chegar para nos encobrir.

 

Resumimos o que restava da tarde a vaguear pela cidade. A conhecer as confeitarias com suas media-lunas, suas tortillas e seu chocolate quente que aquecia o corpo mas não a alma atordoada ainda com tanta beleza. Foi então que alguém adicionou gotas de entusiasmo e de alegria nas canecas de nosso chocolate. E quando o sol começou a se esconder atrás dos picos nevados nós já estávamos entregando a alma aos deuses.

 

A festa da noite seria num bucólico hotel situado em uma das ilhas que fazem parte da geografia do lago Nahuel Huapi.

 

Éramos apenas dezesseis sozinhos. Minha colega Maria Oristela (Mausi) Stangier com quem o quarto eu dividia durante toda a viagem, estava sempre acompanhada de seu noivo, que era nosso colega também, que era o Pires, o Antônio Pires Barbosa Júnior.

 

E, lá na ilha, no bulício da festa, repentinamente encontramos, sentado no chão, sobre grosso tapete de peles, ao lado das crepitantes labaredas do fogo de uma lareira, outro colega de turma, o Gilberto Möhr que com sua meiga esposa estava desfrutando sua lua de mel.

 

Passava muito já de meia noite quando o barco que nos trouxe de volta nos deixava no atracadouro.

 

Nosso hotel era o Bella Vista, dependurado na montanha e construído em estilo suíço. Estávamos ainda no lusco-fusco do raiar do dia e o sol ainda não havia surgido nas fímbrias do horizonte, quando o pessoal do hotel nos acorda avisando que já passava das oito horas da manhã e, logo após o café ser servido seguiríamos para o Cerro Catedral. Para, enfim, sentirmos a neve sob nossos pés, e, talvez, sobre nossas cabeças.

 

Sim. Oito horas. E o sol ainda não havia nascido. Oito horas da madrugada. Nada a se espantar. O mês era Julho. A estação era inverno. E estávamos abaixo do meridiano 41.

 

E lá fomos nós em busca das montanhas. Um teleférico deixa-nos junto a uma cabana-restaurante-loja onde poderíamos alugar não apenas os esquis e seus acessórios como também botas, gorros e luvas especiais e demais indumentárias para a proteção contra os danos causados pelo intenso frio.

 

Uma breve aula, breves instruções de como se usar os esquis e seus bastões. Botas especiais eram fixadas pelos instrutores nos esquis. E agora todos já se auto proclamavam altamente capacitados para enfrentar uma aventura sobre a neve.

 

O teleférico poderia nos levar para as partes mais elevadas. O que muitos fizeram. Menos eu. O cume era logo ali. Poderia lá chegar, facilmente, arrastando meus esquis ladeira acima que não me parecera ser íngreme. E assim, com o auxílio dos dois bastões fui subindo, sozinha… o cume era logo ali… Do alto do teleférico gritos e abanos em minha direção. E eu, ofegante, apenas conseguia levantar uma das mãos para um aceno aos que lá no alto se encontravam…

 

Mesmo sentindo a rarefação do ar naquela altitude, mesmo sentindo que o frio enregelava-me, mesmo sentindo que o ar congelava minhas cordas vocais, eu, teimosamente, fui subindo. Até que… enfim, até eu descobrir que depois de cada lance vencido na montanha, outro lace aparecia… depois de cada curva contornada na montanha, outra elevação a mais se avizinhava. Eu jamais chegaria ao cume que a cada vez mais distante se desenhava… Entreguei os pontos. E na fofa neve afundei. Parecia-me estar sentada sobre uma nuvem de espuma.

 

Quando percebi que poderia retornar à posição vertical, posicionei-me sobre os esquis e montanha abaixo fui deslizando. Fazendo curvas e desviando pedras não demorou muito tempo para que à cabana-restaurante-loja eu de volta me encontrasse. Metade do tempo, quiçá, mais até, do tempo que levara ladeira acima. Mas por outro grande susto eu ainda passaria. Uma tempestade de neve se aproximara. De início, aqueles benfazejos e tão ansiosamente aguardados flocos deslizando sobre minha cabeça, sobre meu corpo. Mas os ventos intensificaram-se e nem acreditei quando os roliços troncos da cabana apareceram a minha frente.

 

Feliz, eufórica e rindo até, mas sem voz, no refúgio eu entrei. Minha voz sumira. Voz que eu fora perdendo durante a íngreme subida, por, inadvertidamente, ficar respirando, fundo, pela boca. Acometida de uma laringite a frigore adquiri uma voz rouquenha que me acompanha pela vida.

 

Na cabana havia de tudo para uma total recuperação do calor corporal. Labaredas crepitantes com seu balé cigano jogavam suas rubras saias pelo ar. E o insuperável e jamais esquecido chocolate quente das montanhas nevadas.

 

Mas, havia lá também umas garrafinhas do bom, saboroso e velho malte escocês… Garrafinhas em formato anatômico do tamanho adequado ao bolso traseiro das calças dos meus amigos. E que era do tamanho e formato exato também para o bolso interno de minha jaqueta de camurça.

 

Antes que o sol se pusesse tomamos o último teleférico de retorno à base. E outra vez ficamos a nos deleitar com o sol que se se escondia atrás dos picos nevados dos Andes.

 

Rolar para cima