Conto de Adair Dittrich discorre sobre triste e emocionante história
Quando Zara chegou, carregada de humildade, no restaurante da estação que ficava junto à estrada de ferro daquele perdido lugar, trouxe junto sua filhinha que tinha então apenas três aninhos de idade.
Zara, um apelido apenas. Que carregava desde o nascimento. Porque os irmãos mais velhos, muito pequenos ainda, não conseguiam pronunciar direito o complicado nome Isaura com o qual fora batizada. Zarinha para os de casa, Zara para os demais no mundo onde desfilaria seu estigma e sua dor.
Chegara de trem, ao entardecer. Descera na plataforma improvisada que ficava junto à linha férrea e onde o trem parava se tivesse alguém para lá descer. Ou para lá subir. Em uma das mãos a mala com seus pertences. Na outra a sua Lucinha. Rumou pela velha e conhecida trilha até alcançar o rancho onde os seus moravam. Um rancho quase só de frestas surgiu ante os seus olhos. Porque da velha casa quase nada mais restava. Um rancho de madeira enegrecida pelas intempéries. Paredes que nunca receberam uma reles mão de cal.
Agachada junto ao tosco fogão de lenha a velha mãe puxando seu palheiro. Chaleira chiando no fogo aberto. Cuia de chimarrão ao lado. Os irmãos ainda não haviam chegado do trabalho. Dona Maria, do fundo do escuro da vida de pronto foi alertando à Zara que lá ela não poderia ficar. Porque ele estava de volta. Estava de condicional. Tinha apenas ido fazer uns serviços numas terras há um dia de distância. Poderia retornar naquela noite, o mais tardar, de manhãzinha.
Ajudou Zara a encilhar o cavalo, a colocar os arreios e a atrelá-lo à velha e rangente charrete. A noite já chegara de todo quando ela bateu nas portas do fundo do restaurante da pequena vila perdida ao longo da linha do trem de ferro.
Lá ela e sua Lucinha por muitos anos permaneceram. Lá ela teve um lar e um abrigo. Lá ela teve trabalho e aconchego. Dona Rosina a acolhera com todo o carinho.
Dona Rosina sabia apenas um pedaço do caminho de agruras que marcara profundamente a vida de Zara.
No correr dos dias, enquanto ajudava nas lides do restaurante ou durante os momentos em que com sua patroa ia se entrosando na arte das costuras e dos bordados, Zara foi deixando escapar de lá do fundo de sua alma atordoada os caminhos tenebrosos que em sua amargurada vida percorrera.
Muito menina era, com as lembranças em sua memória um tanto embotadas ainda, recorda os primeiros dias de dor dentro da vida. Dor física e dor de angústia. Lembra-se, em meio ao nevoeiro que lhe turva a mente, vagamente, que sentia frio, muito frio, deitada em seu catre ao rés do chão, em seu catre encostado na gélida parede esburacada. Do frio que sentia dentro de seu sonho. E dentro de seu sonho ouve o ranger de portas. Dentro de seu sonho ouve passos amortecidos no chão de terra batida. Dentro de seu sonho o frio se transforma, por momentos, em calor, em aconchego. Como se um enorme animal peludo sobre ela se deitasse para aquecê-la. E depois a dor.
Do fundo de seu sono ela não queria mais acordar. No fundo de seu sonho ela queria continuar a sentir o frio. Porque o calor e o aconchego só lhe trouxeram uma intensa dor física. Uma dor como se uma se uma fera rompesse as suas entranhas. Porque o calor e o aconchego só lhe deixavam uma dor que aos poucos a consumia.
Dentro de seu sonho o deitar-se na relva congelada, o cobrir-se com o gélido sincelo que dos galhos das árvores caia, parecia-lhe menos doloroso, menos arrepiante que o fugaz calor que seu corpo por segundos aquecia.
Ela nem chegou a ter a primeira menstruação quando a puberdade chegou, quando os hormônios começaram a transformar seu corpo de menina. Não, Zara não teve a primeira menstruação. Porque o primeiro óvulo que o organismo produzira, de imediato foi fecundado por uma célula que conduzia em seu íntimo o mesmo gene que pelo corpo dela corria.
Zara não entendia as coisas da vida, as coisas do mundo. Era de uma magreza de fazer dó. E mais magra ainda foi ficando com aquele mal-estar fastidioso que a cada dia mais lhe consumia todas as energias. Tinha asco até da gostosa comida que sua mãe sempre preparava. Apenas uma parte de seu corpo crescia. Era um globo a avolumar-se a cada dia mais em seu baixo ventre.
Em uma tarde de sol Zara foi colher jabuticabas em um bosque próximo. Foi lá que sua mãe a encontrou quando a lua já havia surgido. Desfalecida em meio a uma poça de sangue. Ao lado, ligado a ela pelo cordão da vida, um serzinho quase inerte, deitado na fria e orvalhada relva do outono. Foi o quase inaudível vagido do menino que ajudou dona Maria a encontrar a filha em meio à mata fechada.
Zara sobreviveu. O menino também. As cicatrizes ficaram. Em Zara as cicatrizes da alma ferida. No menino as sequelas marcadas em seu cérebro. Um cérebro privado do oxigênio em seus primeiros minutos de vida fora do ventre materno. Cresceu trôpego, quase inválido. A epilepsia fora inevitável. Convulsões frequentes o dominavam. Pouco participou do mundo que o rodeava.
Zara nasceu e fora criada naquela pequena gleba de terra que dos avós de seus avós já tinha sido. Lá plantavam feijão para as suas necessidades e milho para os poucos animais que criavam. Sobreviviam do cultivo destes grãos, do leite das vacas, dos ovos das galinhas, da carne e da banha dos porcos. O pouco que sobrava era trocado por outras mercadorias nas vendas da vila.
Vizinhando ao terreno da família de Zara havia um grande empreendimento do governo. Que era para incentivar os colonos da região a melhor aproveitar a terra. A melhor cuidar dos animais. E lá “ele”, o seu algoz, passava os dias trabalhando.
Quando tratava de contar algo sobre a criatura que um dia fornecera uma célula para fecundar um óvulo de sua mãe e então gerá-la, Zara só se referia a “ele”. Desde o momento em que entendera de onde viera o mal e a dor em sua vida nunca mais sequer o nome dele pronunciou.
O drama de Zara não passou despercebido. Uma criança que gerara outra criança chamou a atenção das autoridades. Os fatos consumados levaram-nas à procura do algoz. Encontraram-no. Condenaram-no. Foi enviado a uma penitenciária na capital.