Leia a última parte da crônica de Adair Dittrich
És a vida expandindo beleza no ouro das praias. O atleta dourado, que ensina na areia, canções sorrateiras do enigma do mar.
Outro dia eu te vi… o olhar-menino, brincando de longes, fazendo-se perto para grito nenhum de agonia rasgar a quietude do instante supremo em que deuses brincavam de ondas no mar.
Teu nome é a desimportância tecendo passos, à beira de espumas, nas horas do riso, nas horas do tédio, nas horas comuns. Depois teu nome é buscado, qual pérola rara, em universos de grãos. E então, quando a voz se resume em borbulhas, o teu nome é esperança. E esperança é o toque macio, tranquilo, ondulante, num voo rasante de teu corpo no mar!
Eu sonhei muitas vezes, nas quentes noites de verão, em ser este deus que tu és. Não importa que o teu reinado acabe no limite da areia. Não importa que longe, lá fora, além deste reino, te reste apenas ferrugens do mar. Nem importam marasmos, marés, amarguras soprando ilusões. O teu mar subalterno, imenso, que dominas do alto da torre termina no asfalto. Mas este asfalto, que te faz um anônimo, aglutina-se, inteirinho, crescendo mil olhos, para ver-te saltando nas ondas em busca de alguém.
E quando as brumas da noite envolvem o mar, molham o asfalto também. E a noite era azul e o vento era azul e o teu sonho era azul quanto ao mar, que só ele era azul.Foi nesta hora que indagaste se terias sido o anônimo, se terias ficado em desmemória na memória de alguém. E o teu dia de rotina se finda com teu rosto adentrando nevoeiros… e teu vulto esmaecendo… esmaecendo… e somente a névoa restou.
És o vigilante noturno. Agora eu ouço a cadência de passos lá fora tendo a certeza mais certa de um carro guardado sozinho na noite. Agora eu sei que meu dormir é tranquilo.
A pequena multidão de teus passos enche de sons e de vida a madrugada coberta de gelo.
E se teu frio é o frio extremo… e se teu tédio é o tédio extremo… e se amanhece branco e gélido o teu mundo… ninguém sabe, ninguém sente, ninguém vê.
Mas também há verões vigiando contigo. E também as ruas, esquinas, igrejas e becos devolvem poesia.
O guarda e o apito,
o apito e o guarda,
o poema e a noite,
o dilema e a noite.
E o guarda e a noite
e a noite e o guarda,
e o guarda na noite,
guardando a noite.
E a casa,
o aconchego,
o homem na cama
e o guarda lá fora.
E o sono dormido
e a ronda lá fora.
E o sonho sonhado
e o passo lá fora.
E dentro a quentura
e os passos no gelo,
no gelo o compasso da noite indormida.
Sabes que teu poema é feito de estrelas? E que estrelas se renovam em cada anoitecer? E que brilho é o que não teme a escuridão? Sim, sabes tudo isto. Sabes até ser eclipse em cada aurora que vem.
És o homem que busca sobreviventes perdidos em grotas e serras e em terras agrestes.
Tens olhos de busca.
Tens busca nos olhos.
Tens mãos de milagre.
Milagre contido no corpo suado,
na alma de apoio,
no rumo do encontro.
Sedento, sangrando, faminto,
que importa?
Importa é retornar altaneiro depois de mil tropeços. Importa é o retorno tranquilo, a face tranquila, sob barba crescida. Importa entregar o encontrado, num reencontro com sua paz interior.
Eu te vi retornando, indomável, de densas florestas, a saudade gemente na alma, um fragmento de riso nos olhos e com pés que contavam de pedras pisadas ao longo do longo caminho.
Eu te vi com mãos multiformes pluralizando gestos.
Eu te vi com lágrimas multiformes, singularizando a dor de desconhecido amigo.
Eu vi, nos teus olhos, o horror refletido, o ver e o rever de horrendas figuras, humanos destroços, moídos, carcomidos, putrefatos e sem vida.
Eu senti que viveste os dramas de todos os dramas e tiveste que te reinventar novamente depois de cada morte, depois de cada volta, depois de ter sido testemunha de tanto mundo vazio deixado para trás.
Sim, eu te vi destroçado, amedrontado, mutilado, como destroçados, amedrontados e mutilados eram os subviventes que, com coragem e amor, retiraste da geografia perdida por onde andaste.
Sim, eu te vi bem perto do impossível, emprestar novas dimensões ao possível. E depois eu te vi provando que o fim, a meta e a paz só podem ser admitidos quando a consciência indicar.
E depois, muito depois, eu te vi, caindo sobre a maca. Um corpo pesado e um espírito tão leve quanto a carícia do torpor que te invadiu.
A maca, o corpo, o espírito, o branco, o torpor, a velha paisagem esfumando, e perto o amor, o sonho interrompido e na inconsciência, a consciência em paz.
… e disto tudo, a certeza de caminhar o mesmo caminho, quando, outra vez, o dever te chamar.
São estes os homens que fazem com que a vida valha a pena ser vivida.
São estes os homens que tornam o nosso dormir tranquilo, o nosso trabalho profícuo e o nosso futuro uma certeza de progresso.
Canoinhas, 05/06/1974.
In memoriam de meu irmão, Antonio Amaury Dittrich, Coronel da Polícia Militar e Comandante Geral do Corpo de Bombeiros do estado do Paraná.
O conto “Em Agonia um Último Aviso… e o Vermelho do Sangue no Cáqui da Farda”, já publicado aqui no Jmais, e o texto de hoje foram inspirados em alguns episódios por ele vividos.