Adair Dittrich evoca suas lembranças dos tempos áureos da ferrovia
Duas linhas de ferro fundido. Paralelas. Fixadas a intervalos nem sempre regulares a pranchões de duro lenho, os dormentes. Nome que eu ligava aos que nas madrugadas nevoentas por eles passavam, dormentes ainda, em busca do pão para o seu dia.
Linhas paralelas que nunca se encontram. Alinhadas sobre os dormentes, escadaria imaginária em plano horizontal, a se perder na distância dos meus sonhos de criança e que no infinito iriam se encontrar. Onde anjos as esperariam.
Era o ramal. A ligação entre a minha vila e a cidade. A ligação entre a Estação Canoinhas e a vila, como minha Nonna Thereza Gobbi designava o que para os demais seria a cidade.
Quantos encantos nesse ramal. Que eu conhecia trecho a trecho, curva a curva.
Sobre aqueles trilhos de ferro não passava somente a saudosa pequena locomotiva, a nossa 102, puxando dois vagões de passageiros.
Quanta coisa mais, por seus trilhos, aquele ramal viu passar. Equilibristas por sobre apenas um deles, corriam, um pé atrás do outro, em um ritmo célere. Outros, aos pares, dando-se as mãos percorriam pequenos trajetos.
Mas, um veículo (se é que poderia ser chamado de veículo…) de uma roda só era o deslumbramento dos meninos. E das meninas, que, boquiabertas ficavam a olhar. Era apenas o aro de uma barrica, ou barril impulsionado por um cabo de grosso arame. A parte distal do cabo era devidamente moldada ao formato da largura do aro, envolvendo-o, para que da linha não saísse. E assim, com este ajuste perfeito o aro deslizava, suave e celeremente por sobre o trilho de ferro. Claro, empurrado pelos garotos, cada um dono de sua engenhoca.
Até corrida de aros sobre os trilhos havia. Para vencer era preciso ter muita habilidade, não apenas para manter o aro em equilíbrio sobre a linha de ferro, mas, também, correr sobre os dormentes, sobre as pontiagudas pedras britadas.
A fim de se proteger da inclemência do tempo, nas estações frias, naquela época, os garotos usavam uma grossa capa de feltro negro, presa por apenas um grande botão na parte frontal do pescoço. Eram capas sem mangas, uma espécie de pelerine que ia até os joelhos. E, quando corriam pelos trilhos, com seus faiscantes aros e as capas esvoaçando pelos ares, pareciam um daqueles heróis das revistas de histórias em quadrinhos ou dos seriados do cinema de então.
Outros veículos, de verdade, pelo ramal transitavam. Havia um carro pequeno. Com apenas dois rodados e uma plataforma. Destinado a levar o material com o qual os turmeiros consertavam os estragos que encontravam pela via férrea. Apertar parafusos, verificar folga entre os trilhos, trocar dormentes danificados, entre outras coisas. Era o vagonete. Impulsionado pela força muscular dos homens que lá trabalhavam. Sentavam-se de lado, com apenas o quadril sobre ele. Um dos membros inferiores pendente. Com o outro davam o impulso, firmando fortemente o pé ao solo. Ritmado. Movimento uníssono. E pelos trilhos voava o vagonete, levando homens, material e ferramentas para que os comboios viajassem em segurança.
E havia ainda um outro, pequeno também, com capacidade para duas pessoas e uma caixa na parte traseira que servia como porta-bagagem. Destinava-se ao mestre de linha, com a finalidade de inspecionar a via. Movido a músculos braçais, era conhecido como velocípede, uma espécie de remo, em tamanho grande, que corria sobre os trilhos.
Outro ainda um pouco maior, como se fosse uma caminhonete sobre trilhos, totalmente de metal, movido a gasolina, era o chamado motorzinho. Raramente circulava pelo ramal. Apenas quando nele viajava algum dos diretores da rede que precisasse tratar de assuntos importantes com as autoridades da cidade.
Não tenho lembrança da primeira vez em que, com minha mãe, no trenzinho puxado pela máquina a vapor, eu embarquei. Do que me lembro, com detalhes, foi a vez em que, com meus pertences nele segui rumo ao internato do Sagrado Colégio. Depois disto foram inúmeras as viagens.
Quantas vezes, logo que as coisas que fôssemos fazer na cidade ficassem resolvidas, regressávamos, pela linha do trem, a pé, para a nossa vila.
Quantas vezes, com meu irmão mais novo, o Maurinho, após a visita ao dentista, naqueles intermináveis tratamentos dentários, que duravam as férias inteiras, retornávamos com a manobra para Marcílio Dias.
Era a Manobra. Assim conhecida era a nossa locomotiva que puxava os vagões de passageiros em todas as manhãs e em todas as tardes. Locomotiva que, logo após o almoço, da cidade retornava à nossa vila. Solitária. Apenas ela. Com importante missão. Manobrar os vagões de carga estacionados em nossa estação. E era nesta manobra que nós dois (e muitas pessoas mais) viajávamos de volta para casa.
Era o tempo de sairmos do local onde se situava o gabinete dentário, passar pelo Bar do seu Cordeiro, localizado na esquina da praça Lauro Müller, onde hoje se encontra o imponente prédio do Banco Itaú, pegar um enorme sorvete, de uva natural e, com ele a escorrer pela roupa e pela rua, chegarmos na estação de Canoinhas, a tempo para embarcarmos na manobra.
Quantas vezes, simplesmente, a pé cruzamos este ramal. Sem pressa, vagando a esmo, parando para ver as águas que vertiam do paredão azul de cascalho. Paredões feitos pela mão do homem, a fim de abrir o caminho para a colocação da via férrea. A que os entendidos chamavam de corte. Porque um corte fora feito na montanha.
Naquele tempo de rigorosos invernos, de uma estação gelada que se estendia por intermináveis dias, estática ficava eu a observar a geleira formada naqueles paredões azuis. Eu dizia que lá estavam as nossas grutas, com estalagmites e estalactites. De gelo. Em plena tarde de um dia de sol. Eram os nossos “gelos eternos”. Porque não derretia. Acumulava-se sempre mais naqueles dias de contínuas geadas.
Eram dois os lugares mágicos. Um perto da cidade, onde se situava a preta caixa de água, próximo a um viaduto sob o qual cantava um lindo regato que despejava suas águas no rio Canoinhas, alguns metros mais abaixo.
O outro paredão, que era mais íngreme, ficava em frente da casa de Dona Barbara. Daquela senhora que nos deixava passar pelo seu território a fim de chegarmos à corredeira da curva do rio. A arquitetura do paredão mudou. Toneladas de cascalho dele foram extraídas para azular as ruas da cidade. Restou um bucólico anfiteatro.
Outras fontes de água debruçavam-se dos barrancos, cascateando lindamente, para nosso deleite. Flores, muitas flores silvestres coloriam o caminho. Painas bailavam ao vento. Palmeiras ali havia. Muitas palmeiras. De várias espécies e tamanhos. E os parreirais que se debruçavam na inclinação do morro, recebendo o ano inteiro a pujança do sol das manhãs. Os belos parreiras do seu Romig. Que com aquelas uvas fazia um vinho ímpar, segundo afirmava meu Nonno Pedro Gobbi.
Nosso ramal deixou histórias. Nosso ramal com belas paisagens de lado a lado.
Um dia o trenzinho deixou de circular. Depois retiraram os trilhos de ferro. Os dormentes aos poucos sumiram. Devem ter servido como limites de propriedades alhures. Até que um dia foi a vez das tombeiras ficarem locupletadas com as pedras britadas que cobriam aqueles mais de quatro quilômetros do leito da antiga ferrovia. Testemunhei o embarque. Nunca soube onde foram despejadas…