Adair Dittrich resgata mais um belo texto do passado
Seria composto de cartas um livro que, ao longo dos anos, Isis Maria Baukat e eu fomos delineando. Como se do quotidiano pinçássemos palavras para compor textos em forma de missivas. Caixas de manuscritos acumularam-se com poemas líricos de Isis e de comuns escrivinhações minhas. Para que se compusesse o clima que em nossas mentes ia sendo burilado.
Não seria o momento de publicar as cartas-poemas que Isis escreveu. Mas dos textos que me couberam rabiscar, eventualmente, irei divulgando alguns.
Amiga,
estou tentando, inutilmente, o encontro da palavra certa que me levaria para fora. Estou tentando o impulso acrobático para alçar-me às esferas cristalinas.
Mas, estou tentando, no vazio do momento que me cerca, encontrar uma palavra certa para dizer o quê?
Eu não conseguiria jamais colocar palavras mágicas escritas quando existe a necessidade de um diálogo comprido. Um diálogo nostálgico, vago, vagante, com coisas sérias contornando risos. Com saudade contornando o agora. Com sorrisos contornando lágrimas. Diálogo sem pausas, sem senões, sem esconderijos. Contando a verdade da alma que anda e vagueia sozinha. Contando a poesia de onde viemos. Sem vergonha de dizer que somos os tolos sentimentais que derramam lágrimas ao menor gesto amigo. Sem esconder, como em autopunição, atrás de uma face circunspecta, a ironia da vida, a tristeza da vida, a preocupação pela vida, pela nossa vida, pela vida do irmão que padece.
Eu não consigo espalhar palavras neste papel para romper a barreira que a falta do encontro informal vem causando. Eu sei que preciso estar entre tantos, falando de tudo. E falamos muito pouco para poucos. E fica o vazio. E com ele aquele resto total quase inteiro de coisas banais que se infiltram no âmago.
E olho este imenso céu azul de hoje. Projetado em verde contra ele, no espaço, a árvore tranquila, bem aqui na minha frente. E eu choro neste impacto comovente. E queria contar para alguém que também sentisse comigo esta beleza imensa. Passarinhos enchendo o ar e depois os grilos em seu lugar.
E os que me rodeiam falam de coisas de um tempo que eu não tenho nem tempo para ouvir. Todos falam de coisas certas, de coisas tolas, mas o diálogo que o meu eu necessita só barreiras encontra.
Houve um tempo em que nos despojávamos de todos os nossos gemidos. De todos os nossos sorrisos.
Houve um tempo, sim. Mas este tempo o tempo esvaziou. Um mundo esquisito o que nos rodeia. Um mundo esquisito que não consegue chorar com as coisas mais simples. Um mundo que não sabe também compreender a grandeza que existe até no silêncio de amigos. E chega então o tempo do vácuo, arrastando intensamente consigo os seres sozinhos ao mundo do só.
E não existe tentativa de englobar amigos velhos para um tempo novo. O vendaval, o sol inclemente, a maresia atravessam também a mente e a alma humana e se encarregam de fustigar o pouco de bom que existe em nós. E, assim percebo que a tentativa há tanto reiniciada de um novo caminhar, novos diálogos, ficaram embargados na garganta e não sei qual explicação seria a certa. Não gostaria de admitir a frustração, mas ela aconteceu. E eu não seria eu se não o confessasse.
Se houve o tempo de uma destruição interna, houve também o tempo da cicatrização. É possível que quando o temporal esteja ameaçando chegar, as cicatrizes doam como se fossem recentes.
É possível mais ainda.
É possível a existência de remorsos por erros, mentiras. Mas, se houve a tentativa do reinício de um diálogo é porque interrompido ele não foi…
É possível, sim a existência de remorsos. Talvez exista, mesmo, algo sufocado na garganta… talvez exista o medo, sim o medo de que a sua vinda à tona possa arrancar todas as raízes, aflorando-as, para o causticante e inevitável sol. Se assim tivesse sido o retorno ao diálogo ele jamais aconteceria. Se assim tivesse sido, a palavra amiga jamais seria ouvida novamente.
Talvez exista mesmo algo muito forte, sufocado na garganta… além de um inconcebível medo, talvez, de que um diálogo mais longo, em uma longa noite ou em um longo dia fizesse brotar erros que se foram, seja a razão maior para as conversas curtas, curtas e evasivas.
Não, eu não estou nessa escala perturbada com aquilo que passou. A decepção direta para mim, desde que fosse conhecida apenas por mim, não teria jamais feito cindir esse diálogo. Mas existe uma tristeza sentida dentro de meu cerne quando outros censuram quem comigo convive.
E eu senti profundamente, sim, por muito tempo, não pelas ásperas palavras que eu poderia ter ouvido e que ouviste… não… a razão ou razões foram outras. E o tempo só se encarregou de nos varrer para lados opostos.
E retornas agora para este diálogo com voz a quebrada, trazendo tanta coisa boa, tanta coisa nova e me encontras cansada. Mas ainda me encontras. E notaste que houve também em mim a necessidade de gritar bem alto o grito aflito, embora rouco, mas grito… notaste a necessidade de falar destas coisas todas sem sentido, sem definição, sem palavras escritas para serem colocadas. E novamente rompeu-se o elo. Contrariando todas as expectativas, uma vez mais rompe-se o elo.
Agora podes ter então a prova de que eu jamais evitei alguém. Eu até procurei a amiga, a velha amiga de tantas noites insones para curtirmos o papo comprido. Não quiseste aceitar aquele meu até algum dia… alguma noite… em outro mundo… em alguma estrela… mas está aí a verdade. As horas mortas desses dias todos foram tantas e tanto tempo houve para a conversa ao pé do fogo …
Admites, agora que deves estar realmente sem coragem para este longo diálogo. Sabes que muitos atos e fatos talvez muito tivessem machucado. Esquece. Tentativas múltiplas muito mais além e muito mais acima existem. Não reavivaremos chamas doloridas. Falarás apenas se quiseres. Se sentires que será a única fórmula para me olhar nos olhos sem tremores e sem temores.
Penso que agora o tempo de que eu dispunha irá se escassear ainda mais. Por excesso de afazeres meus.
Mas, de qualquer forma, crê, falar contigo faz-me bem. E ler o que escreves, faz um bem maior ainda. Foi pena, sabes. Eu tive dois longos dias tranquilos como há muito não acontecia, embora intercalados por uma longa noite plena de trabalho. E as horas mortas esvaíram-se entre os dedos e com elas todas as ideias que tínhamos para ser compartilhadas.
Nesse tempo consegui encontrar meu quarto e no meu quarto muitos pedaços meus. Que eu gostaria que lesses. Encontrei até poesias que eu nem mais sabia que havia feito. De antes dos meus quinze anos. Quem diria! Bom, ainda não escrevi o conto… e isto aqui só irás ler na minha frente se algum dia retornares ao velho papo comprido há tanto pedido.
Até um dia, em alguma estrela.
Mas lembra: eu não conheço erros de alguém a longo prazo.
Eu, em 07/11/76