Andanças pela América do Sul

Adair Dittrich inicia novo roteiro de viagem. Desta vez pela América do Sul. Primeira parada: Lima                                                                    

 

 

“Médico só tira férias quando participa de Congressos”, foram as palavras proferidas por Luiz Carlos Gayoto, então presidente da Associação Catarinense de Medicina, em uma palestra no decorrer de um curso de reciclagem em Anestesiologia, em Florianópolis, no do ano de 1968.

 

 

E foi assim, participando de cursos, jornadas e congressos que conheci muitas cidades e os mais diferentes locais que existiam apenas na minha imaginação. Locais por onde eu vagara através dos muitos livros que já lera.

 

 

Anualmente temos os nossos congressos brasileiros de Anestesiologia e a cada dois anos realiza-se um que engloba as associações de nossa especialidade no âmbito da América Latina, além de muitos outros mais.

 

 

O professor Dr. Danilo Freire Duarte, que foi um dos luminares da ciência anestesiológica mundial era um dos convidados palestrantes de um congresso, que em 1969, se realizava na Bolívia. Eu era assídua frequentadora dos cursos por ele realizados em nossa capital. De muitos almoços e jantares em sua casa desfrutamos. Nesse constante convívio formou-se um imorredouro vínculo de amizade com sua família. Então, com ele e Laura, sua esposa, em um belo dia, começamos a programar a nossa viagem rumo aos altiplanos andinos.

 

 

Através de uma empresa de turismo da ilha da magia, traçamos o nosso roteiro. Havia já uma linha aérea boliviana que fazia a rota de São Paulo a La Paz. Mas, já que estaríamos do outro lado do continente, imprescindível seria começarmos o nosso itinerário lá onde se encontram as tormentosas águas do Pacífico.

 

 

Chegamos juntos em São Paulo. No mesmo avião. Eles, saindo de Florianópolis e eu de Curitiba. E na pauliceia desvairada a correria para colocar o visual em ordem, a correria para atualizar meu guarda-roupa.  À noite, após jantarmos em um bom restaurante fomos ao cinema. Assistimos a um filme comentadíssimo na época. Era o famoso “Um lugar para os amantes”, dirigido por Vittorio De Sica, com Faye Dunaway e Marcello Mastroianni.

 

 

Cedo, no dia seguinte, rumávamos para Lima. Fiquei impressionada com a arquitetura de seu aeroporto que leva o nome de Jorge Chavez, uma homenagem ao primeiro piloto que, em 1910, cruzou os Andes. O reluzente mármore negro de sua construção é a imagem que à memória me vem quando me lembro de nosso desembarque na terra dos Incas.

 

 

Tudo muito fácil e cordial na aduana peruana. No caminho para o hotel notei algo estranho no carro que nos conduzia. Não havia limpadores de para-brisa. Guardei o comentário para mim mesma. No caminho percebi construções diferentes. Pequenas casas, simples, feitas de tijolos bem vermelhos, sem reboco. E sem telhado. Sem cobertura alguma. Ao ver meu ar pasmado o motorista relembrou-me de um detalhe que a minha memória havia deixado para trás. Em Lima não chove. Para que se gastar com telhados? Mas, explicou-nos, construções assim são encontradas apenas nas áreas pobres, periféricas.

 

 

Nosso hotel era uma edificação moderna. Enquanto desvencilhamo-nos das formalidades na recepção, um enorme e deslumbrante painel descortina-se ante os meus olhos. Um painel que tomava toda a parede frontal, entre duas imponentes escadarias circulares laterais. Onde eu já teria visto uma imagem igual àquela? Seria possível que eram as mesmas imagens que eu vira, um dia, nas revistas das histórias em quadrinhos? Mas era a lembrança mais viva que eu tinha. Do famoso camundongo Mickey, de Walt Disney, vagando entre aquelas construções tão diferentes, entre as ruínas dos templos, entre as ruínas do que havia sido um majestoso império, entre imensos degraus em plena montanha… Um profundo suspiro e quase um grito: Machu Picchu.

 

 

Não podíamos perder tempo. Tanto a se ver e tínhamos dia marcado para chegarmos em La Paz antes que o Congresso de Anestesiologia se iniciasse.

 

 

Corremos atrás do tempo. Com um guia a nos orientar, saímos a fim de vermos algo de Lima.

 

 

Sabendo que naquela região não chove, estupefata fiquei quando paramos em um parque arborizado, com verde grama atapetando o chão. De mangueiras, estrategicamente colocadas, gotejava água, continuamente. Para irrigar o imenso gramado. E assim também em todas as áreas ajardinadas. Tudo florescendo. Vida fluindo por todos os cantos, em uma terra onde não chove. Uma fácil explicação nos foi dada. Água do degelo das neves dos Andes. São três os rios que descem pelo vale e as trazem para a região onde a que verte dos céus não chega.

 

 

Lima está situada bem na orla do Oceano Pacífico. Em plena região equatorial. A apenas doze graus da linha do Equador. No mesmo paralelo da nossa cidade de Salvador, na Bahia. Eu sempre vira fotografias de suas praias, e como nós nos encontrávamos nos primeiros dias de outubro, no fundo, bem lá no fundo, dentro de mim, imaginara que haveria possibilidade e clima para um banho de sol, para um banho de mar. Mas a temperatura não convidava para este deleite. E garantiram-me que a água era gelada… Nem as sandálias dos pés eu tirei para a experimentar. Do banho de mar fiquei apenas na imaginação.

 

 

As margens mais ocidentais do nosso continente não exibem apenas água e areia. Tivemos que descer um escarpado penhasco para atingirmos o mar. Onde um deslumbrante espetáculo nos aguardava. Entre as pedras que circundavam o trecho em que estávamos eles apareceram. Altos, garbosos, de plumagem escura, com uma lista bem branquinha que do alto da cabeça descia pelo bico alongado, desfilavam os pelicanos.  Alguns abriam as longas asas exibindo sua enorme envergadura. Lá estavam eles, em busca do seu alimento preferido, os peixes que abundam naquelas águas.

 

 

Foi bem na orla do Pacífico, numa cabana rústica que apreciamos a nossa primeira refeição, no mais longínquo oeste conhecido por mim. Serviram-nos, claro, um peixe que, das águas salgadas, recentemente, fora retirado. Com batatas andinas e muitas verduras refogadas. E, claro, com cerveja peruana.

 

 

Ainda, naquela tarde pudemos conhecer a antiga arquitetura limenha. Antigas construções que remontam ao tempo da colonização espanhola predominam. Chamam a atenção os famosos balcões de madeira nas sacadas dos sobrados. Um patrimônio histórico da cidade. Diz a lenda que eram construídos, harmonicamente, em treliças, para que, apenas de dentro se pudesse vislumbrar o exterior. Para que apenas de dentro se pudesse desfrutar o movimento das ruas. Para que nenhum olhar masculino ousasse penetrar no sagrado ambiente dos lares de então, onde as moças se escondiam. Ou eram escondidas. Entre outras histórias mais que, nas épocas antigas, eram comentadas e imaginadas…

 

 

Caminhando em meio àquele maravilhoso conjunto arquitetônico logo avistamos a famosa Plaza de Armas onde se destacam inúmeros prédios com a cor que os caracteriza, a cor mostarda. Admirá-los mais amiúde seria um programa para outro dia, pois o sol já mergulhava nas águas do Pacífico e o nosso dia começara ainda com a lua nos céus de São Paulo.

 

 

Jantamos no hotel. Logo após o Professor Danilo refugiou-se em um canto isolado e silencioso a fim de melhor preparar-se para a magna palestra que deveria proferir no Congresso, em La Paz. Tentei ficar no saguão de entrada do hotel, vendo o movimento, lendo algo, mas foi impossível. Fora um dia intenso que se iniciara já em plena madrugada. Posterga-se tudo, menos o sono e o cansaço. Muitas aventuras estavam reservadas para o dia seguinte.

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