A longa viagem de retorno à minha vila
Findava o nosso Congresso Latino-Americano de Anestesiologia que a bela La Paz sediara. Última tarde. Últimas palestras. Últimas conversas com os amigos que revira, com os novos amigos que fizera.
O salão destinado à exposição de materiais, equipamentos e medicamentos utilizados em nossa especialidade era um cenário de desolação. Sempre assim eu sentia aquele espaço quando este final se aproximava. Estandes sendo desfeitos. Equipamentos sendo desmontados e encaixotados. Papéis espalhados pelo chão. Um som diferente daquele que em todos os dias ali se ouvia.
Abraços de adeus, de até breve, de até o próximo. Últimas amostras de medicamentos que utilizaríamos sendo distribuídos. Últimos brindes sendo sorteados.
E depois, em meu apartamento do hotel a tentativa de que tudo o que havia sido arrecadado em todos aqueles dias, em minhas malas pudesse ser acomodado. Consegui algumas horas ainda para um digno preparo do meu visual. Seria a noite do grand finale. A noite da tradicional “Cena de Clausura” com a qual se encerram estes eventos.
Noite de encerramento que se sucedeu nos salões do mesmo hotel onde tudo começara. Com a tradicional solenidade eivada de discursos breves. Com uma orquestra apresentando um pot-pourri que englobava as canções mais populares de todos os países ali representados. Incluindo as de alguns países europeus, em homenagem aos palestrantes convidados oriundos do velho mundo.
Um grupo de bailarinos deslumbrou-nos com a tradicional dança folclórica “La Diablada”, em maravilhosa versão para o balé clássico. Ouvimos serenatas bolivianas ao som de flautas de bambu de múltiplos tubos.
Enquanto a ceia era servida ouvia-se apenas um quase abafado som de piano, acompanhado por violinos e violoncelos. Ceia acompanhada desde os pratos de entrada até a sobremesa por excelentes vinhos oriundos das melhores vinícolas da América do Sul.
E o final nada mais poderia ser que um baile onde todos os ritmos e danças foram misturados. Onde se dançou a mais pura valsa vienense. E a instigante valsa venezuelana. Onde tentamos imitar os inigualáveis passistas das escolas de samba cariocas. E onde os nossos Hermanos do sul mostraram sua habilidade e desenvoltura nos mais puros e tradicionais passos do tango.
Foi então que aprendi como se dança este ritmo tão singular, saído das cercanias rio-platenses. Foi então que aprendi que no tango os rostos ficam lado a lado, que os olhos não se fitam. Foi então que aprendi que o tango é dançado com os quadris e os membros inferiores quase retos. Foi então que aprendi que ao se dançar tango não se rebola. E ouvimos e dançamos a tradicional “La Cumparsita”. Que Matos Rodrigues, um uruguaio, compôs.
A manhã seguinte foi curta para acomodar a bagagem, despedir-me de meus colegas e amigos bolivianos e iniciar a longa viagem de volta para a minha vila. Foram muitas as horas que passamos sobrevoando o oeste sul americano. Do alto dos Andes milhares de anos contemplavam as planícies, a floresta, os rios. No alto da aeronave que a toda aquela maravilhava sobrevoava o meu pensamento voava.
Entre anestesistas participantes do congresso e mais alguns executivos das fábricas de materiais e medicamentos que lá expuseram seus produtos, o avião ficou lotado.
A distância a percorrer era longa. Alguns liam, outros colocavam o sono em dia. Chamou-me a atenção um dos gerentes de um grande laboratório de medicamentos anestésicos, sediado na Suécia, que, durante todo o trajeto escrevia seus relatórios em uma minúscula máquina de escrever que ele portava em seu colo. Nunca imaginara existir algo tão pequeno para se escrever.
Fiquei com o rosto colado à janela oval. Não queria perder o espetáculo que lá no solo se desenrolava. A viagem foi longa. Não só o almoço como mais de um lanche nos foi oferecido pelas incansáveis comissárias de bordo que, de longa distância já faziam aquele voo com destino a Buenos Aires. Era o tempo em que a multicolorida empresa aérea Braniff enfeitava o mundo. Coloridos os trajes das moças. Coloridos até o seu sorriso cansado.
Incrível a imagem do Chaco. Dos pantanais. Por muitos minutos aquelas águas, entremeadas com milhares de ilhas, semeavam-se diante de meus olhos. Fiquei a imaginar a riqueza da flora e da fauna, que envolve este tão rico ecossistema, a estender-se por todo aquele território que margeia a bacia do Prata, incluindo a parte que fica mais ao leste, em terras brasileiras.
Findava a tarde quando aterrissamos no aeroporto de Ezeiza. Tínhamos hotel reservado desde muito antes de nossa partida do Brasil. Minha permanência na grande cidade portenha foi curta.
Fomos jantar em um restaurante conhecido já por um dos integrantes de nossa caravana onde apreciamos os imensos baby-beef cujo tamanho, àquela época, era maior que o prato que o continha. Sempre acompanhados pelas conhecidas batatas suflê dos argentinos.
Na manhã seguinte ainda consegui tempo, antes de tomar o voo de volta para o Brasil, para comprar algo que só por lá se consegue. Os impecáveis, pela maciez e caimento, blazers da mais pura camurça que existe no mundo. Além de outros regalos imprescindíveis.
Minha amiga Laura, o Professor Danilo, bem como os demais colegas brasileiros permaneceriam mais alguns dias por lá. Eu precisava voltar. A agenda que aqui me aguardava estava plena.
Entardecia quando o avião que me trazia de volta desceu no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Só no dia seguinte, de manhã, eu poderia, finalmente, tomar outro que me deixaria em Curitiba.
Quando planejáramos a nossa viagem, uma empresa de turismo de nossa ilha da magia encarregara-se de tudo. Com ela adquirimos as passagens de avião. Com ela fizemos as reservas nos hotéis. Não necessitamos pagar adiantadamente as diárias. Com exceção de um. O de Porto Alegre. Para o conceituado Plaza da capital gaúcha eu tinha um voucher com endereço, telefone, valor pago, data e até hora de chegada. Feliz, tomei um táxi e para lá me dirigi.
Dá para imaginar o meu desapontamento quando, à recepção, mostrei o documento emitido pela empresa de turismo da ilha? Não, não dá. Simplesmente não havia reserva alguma em meu nome. Nem para aquele dia e nem para dia nenhum. Hotel lotado. E não só ele. Todos os demais, já conhecidos por mim de outros congressos e jornadas, idem. E eu ali com minhas malas, frasqueira, bolsa, casaco, sem ter para onde ir.
Mas, sempre existem os amigos. Telefonei para um colega anestesista, o incrível Paulo Leggerini Pereira, de quem, eu sabia, poderia esperar uma solução. Encontraria um hotel para mim. Não demorou muito chega ele com sua esposa, minha amiga Mariquinha. Levam-me para o melhor, jamais imaginado por mim. Acomodaram-me na residência deles. Com direito a um inigualável jantar.
Enquanto eu me deliciava com os deliciosos pratos servidos, meu amigo Paulo, indignado, olhava para aquele papel da empresa de turismo da nossa ilha da magia. Após refletir um pouco sugeriu-me telefonar para lá, solicitando um plano de viagem para a Europa com duração de uns 40 dias. Dar-lhes bastante trabalho de pesquisa. E quando, eles, finalmente, findassem a elaboração de todo o circuito que eu faria, simplesmente dizer que desistira.
Claro que rimos muito da brilhante sugestão. Que eu nunca concretizei. Lembrarmo-nos, é preciso, de que era um tempo de rodovias não asfaltadas, de comunicações telefônicas instáveis e outros empecilhos mais que nos prendiam em nossos tugúrios…
No dia seguinte, enfim, meu último embarque. Com escala em Florianópolis. Para troca de aeronave. No saguão do aeroporto Hercílio Luz notei uma pessoa que me parecia ser muito conhecida. Ela olhava para mim. Não havia dúvida de quem se tratava. Aquele cabelo solto, imenso, encaracolado. Aquele rosto suave. Aquele sorriso total. Estranhei, logo ela, a celebridade parar a meu lado. Então me dei conta. Eu tinha na cabeça aquele chapéu de copa arredondada que só se coloca sobre o cocuruto da cabeça, o típico chapéu usado pelas mulheres quéchuas e aimarás bolivianas. E sobre os ombros a manta triangular cheia de desenhos de lhamas. Tudo chamando a atenção. Até da famosa cantora baiana que tem a mais pura e sonora voz de que se tem notícia. Sim, era Gal. Em pessoa. De quem, apressadamente, consegui um autógrafo.
Enfim cheguei em casa. Onde o tempo foi curto para tanto a se resolver. Foi um esvaziar de malas, entregar regalos, dirimir a saudade do meus, voltar a sentir na boca o inigualável sabor das iguarias preparadas por minha mãe.
Colocar a roupa em ordem e, novamente, arrumar as malas. E encetar uma nova viagem. Com a diferença que era pelo quintal de casa. Primeiramente, participar das comemorações do Dia do Médico, na vizinha cidade de Mafra que sedia a Associação Médica “Miguel Couto”, entidade da qual fazíamos parte antes de fundarmos a nossa daqui.
E então seguir para Curitiba a fim de participar de mais um Congresso Brasileiro de Anestesiologia. Em cuja Sessão Solene de abertura eu recebi, das mãos do presidente de nossa Sociedade o Título Superior em Anestesiologia, obtido após aprovação no exame do ano anterior realizado no decorrer de evento similar em Brasília.