Trabalhadores também são torturados por ditaduras

Adair Dittrich volta a escrever sobre os tempos sombrios da história do País

 

 

Com muita tristeza eu leio e ouço que de agruras, prisões e torturas nos tempos dos anos cinzentos os bons e os que trabalhavam, nem falar ouviram, que dirá por elas terem passado.

 

 

Com muita tristeza eu tenho que ouvir de pessoas estudadas, cultas que elas não foram presas e nem torturadas porque nunca puseram fogo em ônibus e nem assaltaram bancos à mão armada.

 

 

Meu irmão Aldo, torno a repetir, tinha como arma apenas a sua pena e a sua voz. E como Castro Alves, pregava a Liberdade. E foi preso e torturado.

 

 

Não me prenderam. Tentaram uma sutil tortura física. Mas a tortura atingiu em cheio toda a minha família das formas mais inimagináveis.

 

 

Eu trabalhava no então Centro de Saúde, onde, religiosamente, cumpria as horas que me cabiam lá permanecer para atender os pacientes. E no fim do mês todos os funcionários iam à coletoria estadual com sua folha de pagamento para receber seu salário. Todos. Menos eu. Meu nome não se encontrava nunca na lista dos que tinham direito de receber a remuneração pelo trabalho realizado. E isto se prolongou por meses.

 

 

Minha irmã Avany era diretora da Escola “Manoel da Silva Quadros”, de Marcílio Dias. O salário dela também ficara bloqueado.

 

 

Nas primeiras férias, após um ano no serviço público, eu fui me aprimorar na especialidade de anestesiologia na Santa Casa de Misericórdia de Santos. Foi um estímulo recebido de meu amigo e colega Adir Seleme. Pelo menos eu preencheria aquelas horas ociosas depois que meu consultório quase às moscas ficara. Infelizmente não pode ser um estágio de mês cheio. Porque nos primeiros dias de férias ao sul me dirigi quando fui ao encontro de meu mano na capital gaúcha.

 

 

O tempo foi passando enquanto eu via cortinas, portas e janelas fechando-se à minha passagem. O tempo foi passando e o ferrolho da ditadura foi apertando. Meu mano, livre das acusações que contra ele pesavam, após ser absolvido e considerado inocente, ficou trabalhando no escritório de advocacia de um colega e amigo dele, em Curitiba.

 

 

E trabalhando, sim trabalhando em um escritório de advocacia ele estava. Ao de lá sair, em um final de tarde de um inverno curitibano, em meio à névoa que a cidade envolvia naquele precoce anoitecer, em uma praça, na fila para tomar o ônibus que o levaria ao conforto de seu lar, foi algemado e carregado para os imundos porões de algum quartel. Estávamos no ano de 1975. Onze anos de ditadura já.

 

 

Deste episódio, assim como aconteceu, só ficamos sabendo muito tempo depois, quando finalmente, com ele pudemos manter contato. Só sabíamos que para a sua casa ele não havia retornado. Sua filha primogênita era ainda um bebê de poucos meses de idade. Sua esposa Gecy e a filhinha para a nossa casa, em Marcílio Dias, voltaram.

 

 

Nessa época meu irmão mais novo, Antônio Amaury, o Maurinho, era capitão da Polícia Militar do Paraná. Comandava o Batalhão de Trânsito da capital paranaense. Era empolgado com suas funções. Ordens sumárias mudaram-no para o setor de Intendência, onde a incumbência maior era fazer a contagem de peças dos uniformes dos praças. Pouco tempo ali ficou. Porque foi convidado para permanecer em sua própria casa, à disposição do comando maior, que então estava nas mãos de um oficial superior do exército nacional.

 

 

Para ele, que desde os tempos de aspirante e de tenente, estava nas lides do Corpo de Bombeiros, ou escalado no pelotão de salva-vidas das praias, ou em busca de sobreviventes da queda de um avião nas escarpas da Serra do Mar, aquele período de inércia e apatia teceu profundas marcas em seu âmago.

 

 

Maurinho morava em uma casa no bairro Água Verde. Do outro lado da rua em um pequeno prédio havia um apartamento com mudança diária de inquilinos. Um pequeno apartamento, de cujas janelas, binóculos e lunetas vigiavam a casa dele no decorrer das vinte e quatro horas de todos os dias de todas as semanas. Um pequeno apartamento onde aparelhagem de escuta e gravadores que seriam, àquela época, os de última geração, sondavam o que se falava nos arredores. Os inquilinos que se revezavam neste mister usavam sempre camisetas brancas apertadas, calças de índigo blue e cabelo cortado a escovinha. Com jaquetas escuras de botões dourados nas horas de frio. E coturnos, claro!

 

 

Imagine-se o valor gasto, durante meses nestas tocaias. Com a única finalidade de saber se o outro mano, o Aldo, por ali apareceria. Mas isto foi antes daquele julgamento que o absolvera…

 

 

Mas, apesar de todas as agruras pelas quais passou meu mano Maurinho, foi por intermédio dele que soubemos onde o Aldo se encontrava. Foi por intermédio dele que soubemos que o Aldo fora levado para o Doi-Codi, em São Paulo. E foi por intermédio dele que soubemos que seria com minha mãe que o alto comando daquela instituição militar queria conversar. E foi por intermédio dele que, dias depois soubemos que o Aldo havia sido operado de emergência e que, em algum hospital da capital paulista, se encontrava internado.

 

 

Imaginem se minha mãe teria condições físicas e emocionais para enfrentar a truculência de então. Em lugar dela fui eu. Eu tinha agendado minhas férias para o mês de outubro, a fim de participar de um congresso de anestesiologia em Salvador, na Bahia. Tive de implorar para que alguns dias eu usufruísse já. Porque a minha ida a São Paulo era inadiável. A conversa com a megera cúpula estava agendada. Com dia, hora e local. Na famigerada rua Tutoia. Lembro-me das palavras, quase em surdina, do Dr. Oswaldo Segundo de Oliveira. “Eles estão exagerando…” Com o aval dele, tirei uns dias de férias adiantados.

 

 

Com meu bolso quase vazio eu fui. Em um tempo sem cartões de crédito portava-se o dinheiro vivo ou em cheques especiais. Ousei hospedar-me no mais luxuoso hotel da capital paulista. Porque eu sabia que mil olhos me vigiariam. Na mais chique butique da então famosa rua Augusta, um novo guarda-roupa adquiri. E no salão Jacques Janine consolidei a mudança de meu visual com novo cabelo e adequada maquiagem para uma “reunião de negócios” em plena tarde de um dia de semana na pauliceia desvairada.

 

 

Em um táxi de luxo para o lúgubre e cinzento, embora verde-oliva, local da audiência eu rumei. Não me lembro o que por dentro eu sentia. Apenas sei que o que me movia era ver e saber de meu irmão e sobre o seu estado físico e espiritual para minha mãe poder contar.

 

 

Mas não era comigo que os homens fardados, com ombros carregados de insígnias e estrelas queriam falar. Palavras cruéis e desabonadoras foram as que eles encontraram para se referi à minha mãe que ali não pudera comparecer.

 

 

Foram anos com tudo isto guardado no fundo mais fundo, em meio às reentrâncias das cavernas do meu lago da memória. Reminiscências que à tona sempre emergem, mas não com tanta assiduidade como nestes últimos tempos em que o meu medo me faz delas um constante viver.

 

 

Lembrando-me de Dom Helder Câmara eu repito: “Tortura Nunca Mais!”

 

 

Por Deus, que seja: Tortura Nunca Mais!

 

 

 

Rolar para cima