Vivemos uma eterna resistência….

Adair Dittrich reflete sobre as coerções sofridas por sua família por parte da ditadura e mesmo depois dela

 

 

Olho para esta página em branco e fico a meditar se vale a pena continuar deitando sobre ela milhares de negras figuras em forma de letras, em forma de números, em forma de palavras que unidas em frases se transformam…

 

 

Porque tanto ainda há a se dizer, a se contar e percebo, tristemente, que poucos, muito poucos são os que se emaranham por entre estes densos ramos de memórias perdidas. E mais poucos ainda os que compartilham da minha dor, os que partilham das minhas angústias, das angústias que passamos durante os anos cinzentos que cobriram de luto a nossa terra.

 

 

Um dia eu falei sobre uma reportagem que publicamos em nosso velho e atuante jornal “Barriga Verde”, quando dele eu fui diretora.

 

 

Implorávamos aos poderes estabelecidos que não indeferissem o processo que postulava o funcionamento da sétima série da Escola Básica Professor Manoel da Silva Quadros, da vila de Marcílio Dias.

 

 

Minha irmã, Avany Dittrich Jürgensen, era a diretora da Escola. Por alto, lá em casa, ela desabafara toda a sua angústia, só em pensar que aquelas crianças, aqueles adolescentes teriam bloqueadas as suas aspirações de continuar tendo um estudo regular, ao lado de seus lares.

 

 

Meu mano Aldo não havia ainda sido levado para os porões da ditadura onde, sem piedade, foi torturado, colaborava conosco na redação do jornal. Escrevia brilhantes editoriais que assinava apenas como A.D. Que, coincidentemente, eram as minhas iniciais também, bem como as de solteira de minha irmã diretora da Escola.

 

 

Não preciso dizer que após estas reportagens, reproduzidas, inclusive no jornal “O Estado de S. Paulo”, o mundo ruiu em cima de minha irmã. Um processo, não sei se disciplinar, ou algo assim, contra ela foi instaurado. A chefia regional da educação era sediada em Mafra. E para aquela cidade ela era obrigada a se locomover, semanalmente, a fim de responder a uma verdadeira inquisição.

 

 

Se, por acaso, ela não fosse Dittrich, não fosse irmã de Aldo Pedro Dittrich, alguém que já havia sido absolvido de todas as denúncias que contra ele pesavam na Quinta Região Militar, nenhum senão contra ela haveria. Mas a nossa família tinha que aprender a lição.

 

 

Não, não foram apenas os salários de minha irmã que por meses ficaram bloqueados. Perseguiram-na com todas as forças que tinham com o intuito de que ela desistisse de suas funções no magistério. Mas ela aguentou soberanamente. Ela resistiu.

 

 

Mas as suas agruras não terminaram nem mesmo depois de aposentada. Nem mesmo depois que os negros anos tiveram fim. Porque, em nosso estado, governantes que com o regime ditatorial estavam mancomunados, eleitos foram. E, copiando do Dr. Haroldo Ferreira uma corriqueira expressão por ele usada, “o dedo craquento” destes governantes sobre o nome de minha irmã Avany colocavam para impedir que os seus proventos fossem os proventos a que uma diretora que trabalhava 40 horas semanais tivesse direito. Por meses, em sua aposentadoria constava apenas o mais irrisório valor possível a ser pago a algum servidor do estado. Ela recebia o equivalente aos proventos de uma servente. Mas ela resistiu.

 

 

Meu mano mais novo, Antônio Amaury, o Maurinho, passou pelas mais infames humilhações e retaliações em suas funções na Polícia Militar do estado do Paraná. Creio que naquela época ele era Capitão, e nesta categoria permaneceu por anos e anos… Outros mais jovens a quem ele dera aulas na escola de cadetes da PM, ultrapassaram-no nas promoções. Nem para receber seu soldo ele poderia comparecer no quartel. Ficou, literalmente, segregado dentro de sua casa. Sob as ordens de um comandante que nem da PM do Paraná era. De um comandante vindo de fora. Vindo de alguma arma do exército. Mas ele sobreviveu. Ele resistiu.

 

 

Gloriosamente depois ele retornou. Depois de 1984. Como Comandante do Corpo de Bombeiros do Paraná, chegando à patente de Coronel.

 

 

Meu outro mano, Adolpho Ariel, o Fito, era funcionário da Petrobrás. Trabalhava no escritório de Ponta Grossa. Foi enviado para os sertões do Centro Oeste, dormindo em barracas, ao relento, na maior parte do tempo. Em locais tão distantes e sem comunicações. Só ficou sabendo da morte de nosso pai, quando em seu retorno a Ponta Grossa, a fim de usufruir suas férias, encontrou em seu escaninho o telegrama que a ele havíamos enviado. Semanas haviam se passado do dia em que meu pai partira. Mais um sobrevivente na família. Ele resistiu.

 

 

Minha mãe ainda cuidava do restaurante da estação de Marcílio Dias. Pouca gente viajava pela via férrea. Mas ali era a vida dela. Continuava com seu mister de todos os dias, o mister de preparar as refeições, servir as refeições para os poucos remanescentes que ainda percorriam o nosso trecho pelos trens. O quê contra ela poderiam fazer? Encontraram, Fizeram. Fiscais da receita estadual visitavam-na semanalmente. Lá ficavam por horas vasculhando notas, vasculhando mercadorias. Com o intuito de algo encontrar para empunhar a caneta e imputar uma multa qualquer. Como nada encontravam, um belo dia queriam saber onde estariam as notas das padarias. Minha mão explicou que todo o pão consumido pela freguesia, tanto no decorrer das refeições como aquele com que se montavam os sanduíches vendidos no balcão do café, eram feitos por ela. Como? O quê?

 

Então a senhora tem uma padaria?

 

Ouvidos moucos para as explicações, tacaram, de imediato, um novo imposto, acrescido de multas e afins ao fato de minha mãe ser dona de uma padaria não declarada… Mas ela resistiu…

 

 

Minha irmã Aline Dittrich Scholze a cada ano era designada para lecionar em outra escola de nossa cidade. Para ela, em todo aquele tempo, não houve promoções, não subiu de letra, não teve seus méritos reconhecidos. Restava-lhe a alegria de acrescentar ao seu minguado salário, suas aulas de piano, seus bordados, suas aulas particulares. Com isto ela resistiu.

 

 

E eu? Bem, muito já contei. Meus proventos como médica do estado ficaram congelados por muito tempo. Quando da fusão dos institutos de previdência em um só esqueceram-se de mim quando os honorários médicos eram enviados.

 

 

Talvez se minha profissão fosse outra eu teria deixado de trabalhar. Mas médico não consegue parar. Nem que queira. Porque sempre existe alguém sofrendo. Porque sempre existe alguém que precisa continuar vivendo. Porque sempre existe alguém a quem a dor precisa ser aliviada ou removida. Porque mesmo que de um repouso se necessite colocamos a nossa ciência e a nossa arte, em primeiro lugar, a fim de a dor amenizar do outro, a fim de a dor amenizar da outra que a nós pedem socorro.

 

 

E para resistir a tudo aquilo outro lenitivo eu encontrei. Pelas páginas do nosso jornal “Barriga Verde” eu derramava toda a minha angústia, toda a minha tristeza, toda a minha amargura. Porque resistir é preciso. E foi resistindo que até aqui eu cheguei.

 

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