Olhando o futuro pelo retrovisor embaçado

A globalização amplia as oportunidades de escolha, porém diminui a capacidade dos indivíduos decidirem

 

 

Dr. M. Mattedi*

 

 

O Bolsonarismo materializa a reação conservadora à globalização no Brasil. Por um lado, a globalização aumenta as incertezas causadas pela mudança vertiginosa das estruturas sociais; por outro, as maneiras existentes para lidar com as desigualdades não funcionam mais. Paradoxalmente, a globalização amplia as oportunidades de escolha, porém diminui a capacidade dos indivíduos decidirem. Neste contexto, a questão é saber se criamos novas instituições ou mantemos as antigas para enfrentar os efeitos das mudanças disruptivas. Portanto, o que está em jogo na reação conservadora a globalização é como deve ser o futuro.

 

 

O processo de intensificação da globalização nas ultimas três décadas tem provocado reações políticas ambivalentes. Por exemplo, enquanto em alguns países a resposta é conservadora como Trump nos Estados Unidos, e o Brexit no Reino Unido; em outros a resposta é progressista como no Canadá com Trudeau, ou Macron na França. Isto indica que não existe uma única forma política de enfrentar com o desencanto e o desespero produzido pela globalização.Neste sentido, é possível diferenciar uma Agenda Fechada e uma Agenda Aberta diante da aceleração das mudanças. No Brasil o Bolsonarismo indica o alinhamento com a Agenda Fechada.

 

 

O fechamento da agenda política no Brasil foi produzido por forças muito diferentes. Estas forças exprimem as desigualdades geradas pelo padrão de desenvolvimento brasileiro. Por muito tempo estas forças permaneceram latentes devido a dificuldade de articulação e pela hegemonia exercida pelas narrativas de esquerda. As mídias sociais quebram a barreira espacial e puseram em circulação narrativas alternativas. Estas forças não são homogêneos e não estão organizadas institucionalmente. Por isto, mantém, ao mesmo tempo, relações de complementariedade e oposição. Neste momento, é possível diferenciar cinco forças principais.

 

 

Um primeiro grupo é formado pelos Bolsonaristas Revoltados. Este grupo foi constituído quando a direita foi para rua durante o Fora Dilma em 2016. Esta frente integra o Discurso Anticorrupção coma pauta da Segurança Pública que emana de dentro dos tribunais, quartéis e delegacias. Este discurso se disseminou com o enfraquecimento da Democracia Representativa e é composto pelos convictos. Baseia-se numa visão que articula a repulsa a atividade política com maniqueísmo da luta do bem contra o mal. Caracteriza-se pela luta contra o Estatuto do Desarmamento e os Direitos Humanos. Se identificam com o Bolsonarismo pelo mantra autoritário da ordem.

 

 

Um segundo grupo está relacionada Bolsonaristas Inconformados. Nas últimas décadas a Velha Classe Média teve o perímetro de privilégios sociais e econômicos reduzido.O bloqueio do acesso privilegiado as posições superiores do Estado, associado com a redução da capacidade de compra causada pelo aumento dos serviços intensificou o jogo perde/ganha.Por isto, se opõe as ações afirmativas e as políticas compensatórias, que são vistos como uma espécie de “fura fila”. É constituído pelas “pessoas de bem” que não encontram mais a sociedade de antes. Se identificam com o Bolsonarismo porque acreditam que seja possível retornar ao modo de vida anterior.

 

 

 

Um terceiro conjunto de forças é formado pelos Bolsonaristas Indignados. A globalização intensifica o processo de individualização e flexibiliza as convenções sociais tradicionais. Neste sentido, constitui uma reação a experimentação identitária que vai da descriminalização do aborto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. É neste contexto de questionamento da normalidade que se situa a disputa pelo senso comum. A besta negra a combatida é a “Ideologia de Gênero” e a pauta da doutrinação na Escola Sem Partido.Portanto, muita informação combinada com pouco sentido levou a busca de abrigo nas crenças tradicionais do viés religioso do Bolsonarismo.

 

 

Um quarto grupo diz respeito aos Bolsonaristas Desesperados. Compreende o conjunto de pessoas que foram tragados pelo longo período de recessão. Este grupo viu sua renda declinar tanto pelo desemprego quanto pelo processo de endividamento do microcrédito.É formado, principalmente, mas não exclusivamente, pela Nova Classe Média, também chamados de batalhadores. Desamparados pela inconsistência das políticas públicas e de transferência de renda temem o retrocesso social.  Trata-se da maior parte dos eleitores de Bolsonaro. Neste sentido, aderiram ao Bolsonarismo de forma pragmática por um misto de desespero e falta de opção.

 

 

O quinto grupo é composto pelos Bolsonaristas de Conveniência. É formado pelos donos do dinheiro e da terra,que são contrários a distribuição da renda e do poder.Para este grupo pouco importa quem governa desde que se garanta e amplie os seus meios de reprodução. Isto envolve manter a capacidade de influência nas políticas de renda.Sua agenda envolve a garantia do pagamento do serviço da dívida, acesso a financiamento, desonerações fiscais…Deslizaram para dentro do Bolsonarismo quando a eleição de Bolsonaro era inevitável. Neste sentido, o interesse no Bolsonarismo é permanecer controlando patrimonialmente as torneiras do Estado.

 

 

Embora as fronteiras ideológicas entre estas forças não sejam nítidas é preciso saber diferenciar o Bolsonarista Profundo (convicto) do Bolsonarista Superficial (casual).Assim, no alinhamento político entre autoritarismo, conservadorismo, tradicionalismo, pragmatismo e oportunismo não foram estes grupos que abraçaram Bolsonaro, foi Bolsonaro que abraçou estes grupos. Moro para uns, Guedes pra outros, ou ainda um Ernesto Araújo contra a globalização… Apesar do lema “Deus acima de tudo, o Brasil acima de todos” vai ser difícil atender a todos. E é bem provável que as tensões políticas criadas pela acomodação destes interesses dissolva a mistificação política do Bolsomito.

 

 

Portanto, o Bolsonarismo é condensação política do medo e da raiva produzido pela globalização. O fechamento conservador da agenda terá profundas implicações para as políticas públicas e as liberdades individuais e, consequentemente, na organização social. A adoção da Agenda Fechada é a forma local de lidar com os efeitos ambivalentes da globalização que não puderam ser absorvidos ou resolvidos pelas gestões do PSDB e PT.Há sempre uma propensão a negar o que não se conhece e o que não se consegue resolver… É por isto que na direção escolhida o futuro parece ter passado e o passado parece ter futuro. Logo saberemos se é possível seguir em frente olhando para trás.

 

 

*Dr. M. Mattedi é professor

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