“E a cobra fumou…”: Adair Dittrich relembra os moradores de Canoinhas que participaram do conflito
Para o escritor Enéas Athanázio não existe pausa. E sua pena jamais descansa. Dele acabo de receber “O Contestado” e “O Holocausto”, os dois últimos livros que acaba de publicar. Duas coletâneas de textos que levam a memória a reprisar fatos lá no fundo há muito já enclausurados.
Por razões arrancadas não sei de onde, abro primeiro aquele que me leva às recordações da Segunda Grande Guerra Mundial. Entre relatos fidedignos de personagens reais, que pelos campos de extermínio nazistas passaram, encontro a de um ex-combatente britânico que fala sobre as atrocidades pelas quais passou. O que viu e o que sentiu.
Então abrem-se as cortinas de um enorme palco e um desenrolar de imagens me envolve. Como se fora a abertura de um filme em gigante tela semicircular, em cinerama e perfeito som real descerram-se os véus e um mundo, há tanto tempo como se hermeticamente fechado, surge em minha frente.
Vejo-me criança na sala onde minha mãe tinha suas máquinas de costura. A grande sala feericamente iluminada pela luz do sol da tarde que pelas grandes janelas entrava. A sala onde, em lugar de destaque, ficava o nosso velho, grande e possante aparelho de rádio.
Um mundo de vozes e melodias chegavam até nós, vindas pelo éter, das mais longínquas, diversas e desconhecidas partes da terra.
Através daquelas ondas sonoras o mundo começava a ficar pequeno. Começava a ficar próximo. Porque muitas notícias chegavam quase que em tempo real.
Mas era uma época em que a quase totalidade do que acontecia planeta afora vinha até nós em forma de tristeza. Em forma de saudade.
Lembro-me ainda do dia fatídico em que meu Nonno Pedro Gobbi levantou-se, abruptamente, da cadeira de balanço que ficava ao lado do aparelho de rádio, e exclamou:
— Esta o Duce vai pagar caro!
O Duce a que ele se referia era Benito Mussolini. O chefe das forças armadas italianas. O dia era uma Sexta-Feira Santa. O ano, 1938. A Italia, naquele dia santificado, havia invadido um outro país.
Sim, estávamos já em plena guerra mundial. As notícias deveriam ser sempre avassaladoras. Sentia-se o tumulto no ar.
Anos se passaram desde aquela fatídica Sexta-Feira Santa. Entre nuvens plácidas e brancas entremeadas por outras de negro espectro, pouca coisa à memória me vem sobre as notícias que o nosso aparelho de rádio trazia do lado de lá do Atlântico Norte.
Mas do que eu me lembro bem, anos mais tarde, é dos trens de passageiros, com muitos vagões adicionais, abarrotados de jovens que eram apenas chamados de “Convocados”.
Correndo deixavam o comboio, mal os freios acabavam de ser acionados e todas aquelas rodas de ferro gemiam ao parar sobre os trilhos defronte ao restaurante e à estação de Marcílio Dias. Invadiam, famintos, as salas e queriam ser servidos logo. Uma juventude feliz, buliçosa, alegre, expandindo energia em seus verdes anos, anunciando aos quatro ventos que eles eram os Convocados. Aspiravam estar entre os que seriam selecionados para embarcar para a Europa. Para seguir para os campos de batalha. Felizes iriam enfrentar o desconhecido horror da guerra. Imaginando, talvez, como heróis retornarem. Lembro-me ainda das toscas e simples palavras que para minha mãe dirigiam:
— Dona, nóis semo “invocado” pra lutá na guerra!
Dizia-se que nós jamais entraríamos naquela guerra. Havia uma frase que os jornais publicavam e que os locutores das estações de rádio alardeavam em alto e puro som:
“Mais fácil uma cobra fumar cachimbo do que o Brasil participar da guerra na Europa”.
Mas a cobra fumou. O lema dos pracinhas “A cobra está fumando” não constava apenas de meras palavras. Havia o desenho de uma vermelha cobra fumando como insígnia em seus uniformes. Dos uniformes dos combatentes de nossa FEB, de nossa Força Expedicionária Brasileira.
Eram poucas as famílias que tinham a felicidade de possuir um aparelho de rádio. E em todas as tardes, logo após o almoço, após a veiculação do jornal e da sagrada novela das 13 horas havia uma programação especial vinda diretamente da Itália.
Não eram apenas notícias de como seguia a guerra. Cartas dos soldados eram lidas. Cartas que do lado de lá em horas chegavam aos ouvidos dos destinatários. Porque para lê-las aqui, talvez meses se passassem…
Depois que os nossos pracinhas embarcaram para a guerra e as suas famílias ficaram sabendo deste programa a nossa sala não sabia mais o que era ficar vazia naquele sagrado horário. Ouvidos atentos aos nomes dos combatentes feridos, aos nomes dos que em solo italiano tombavam para sempre sob a mira da artilharia inimiga. O suspiro de alívio por saber que entre os mortos não constavam os nomes dos seus entes amados.
De nossa vila muitos jovens partiram para lutar contra os nazifascistas europeus. Tenho lembrança de alguns poucos que retornaram com sua saúde abalada. Com as noites carregadas de sobressaltos. Com as imagens de corpos de companheiros sendo estraçalhados por bombas a poucos passos de onde eles se encontravam. Com os sons das sirenes e dos bombardeios a lhes assolarem a mente em quase todas as noites de suas vidas.
Conheci alguns sobreviventes da tomada de Monte Castelo. A alguns eu atendi como médica. A muitos, como amiga, como vizinha. Tristemente eu presenciei um espectro de homem a vagar pelas ruas chutando latas, chutando pedras… Com amargura falei com outro que dizia nunca da guerra ter ouvido falar, que de sua casa e do lado da saia de sua mãe jamais tinha saído. Outro que nascera e crescera na lavoura quis retornar ao seu plantio de milho e de batatas. Plantava num dia e no outro passava o arado por cima de tudo… por cima de tudo… por cima de todas as ilusões…
Entre os que por lá tombaram, cravejados pela artilharia inimiga consta um jovem tenente da Força Aérea, nascido aqui na terra de Santa Cruz, o tenente Ari Rauen. Mais outros três pracinhas canoinhenses, com ele, no cemitério de Pistoia, na Italia, foram enterrados. Eram eles os soldados João Rechocoski, Sergio Grevinski e Simião Alves de Almeida.
Alguém sabe onde estão situados os logradouros públicos de nossa cidade que o nome deles estampa em alguma placa?
Alguém sabe onde estão situados os logradouros públicos de nossa cidade que levam o nome dos demais combatentes que, em consequência do fardo acumulado em suas mentes e em seu físico, nas tétricas noites e tétricos dias de contínuo tiroteio, tiveram suas vidas precocemente ceifadas?
Os que lá não tombaram fisicamente, levaram depois uma vida quase que em um mundo paralelo. Porque dentro de seus pensares as atrocidades presenciadas, os uivos de dor e desespero ouvidos, não poderiam ser anulados no seu caminhar quotidiano.
No mês de maio de 1975, decorridos 30 anos do término do conflito que milhões de vidas ceifou em todo o mundo, o Tenente Narlock, responsável pela 13ª Delegacia do Serviço Militar, sediada aqui em Canoinhas, conseguiu reunir quase a totalidade dos ex-combatentes que no entorno de nosso município moravam. A ocasião foi consagrada por uma bela imagem colhida pelo nosso brilhante fotógrafo Egon Thiem para uma reportagem que fizemos para o jornal “Barriga Verde”.