Adair Dittrich rememora lembranças da ponte que liga Canoinhas a Três Barras
“Eu mesmo piso… eu mesmo apago o rasto…”
A repetida frase que um andarilho, o Fiépe, talvez, em voz meio arrastada devido aos já múltiplos goles de pinga engolidos pelas esquinas da vida por onde andava. Repetida frase que se ouvia em suas cheganças ao restaurante de minha mãe, nas vezes todas em que para nossa vila se arrastava.
Olhando para as imagens dos destroços que restaram ao longo dos trilhos do que fora a pujante rede ferroviária, eu transporto as palavras do filósofo-andarilho Fiépe para quem aquela imponência toda construiu. Ele mesmo aqui pisou… e ele mesmo a tudo apagou… Ele, o americano Farquhar, o homem do chamado Sindicato Farquhar chegou com imperiais poderes para construir uma ferrovia em nosso território.

Não, eu não vou rememorar esta história que apagou para sempre a memória de nossa pujança verde. Que derrubou para sempre o que havia de melhor em lenho das mais verdejantes e robustas espécies.
Não, eu não vou rememorar a expulsão dos nativos de suas terras e nem a matança que deixou tinto de sangue o nosso chão.
Eu só queria saber os porquês de se construir um império tão grande em torno de nossas florestas, acabando com elas e com o que dentro delas havia, deixando em seu rasto um território pobre e arrasado.
Eu só queria saber os porquês de se construir um império tão grande e quando de seu entorno nada mais se conseguiu sugar, ensacar a viola e deixar o rasto de sangue apagado.
Seriam as palavras de Fiépe ao Sindicato Farquhar dirigidas?
Como não conseguimos reconstruir os restos mortais do que ficou arrasado, restam-nos as imagens de um passado que foi lindo.
Não falo apenas do conjunto arquitetônico da estação de minha vila. Dos três prédios que lá, quase em ruínas, restam. Do lamentável estado de deterioração em que se encontram.
Vejo agora, com tristeza, atuais imagens de nossa bela ponte de ferro. A nossa ponte preta que bela e esbelta surgia na curva dos trilhos.
Era ela reluzente ao sol de todas as manhãs. Ao sol de todas as horas. Vejo-a molhada pelas águas das chuvas. Vejo-a enfeitada de branco nas geadas de tantos invernos passados.
Era a nossa Ponte do Trem. Estendendo-se, altaneira, sobre o leito do rio… do meu rio.
Por ela multidões passaram. Levando vida. Trazendo alegria.
Por ela a saudade passou. Nela a saudade ficou.
Era um dos pontos altos dos passeios de toda uma vila nas ensolaradas tardes de domingo.
Era o trampolim de onde exímios nadadores saltavam para dentro das águas do rio. Um trampolim de vários lances. O inferior, abaixo da banda de rodagem dos trens. O médio, ao nível da ferrovia. E os que já haviam alcançado um grau de mais alta performance saltavam do topo… Desde que o rio estivesse em seu nível normal.
Mas era um tempo em que pelo rio corriam apenas suas águas. Era um tempo em que no fundo do rio apenas lama, pedras e seixos rolados eram encontrados. O rio não era, ainda, um lixeiro universal…
No tempo em que os trens percorriam o nosso território encantado apenas poucos pedestres ousavam atravessá-la. Porque, se alguém estivesse caminhando por ela e um comboio apitasse na curva, não seria fácil correr para fugir de uma morte certa.
Mas era só se informar com o telegrafista de plantão na estação férrea de minha vila para se saber se algum cargueiro poderia por lá trafegar durante as incursões que por ela se fazia.

Ela era o caminho da escola de todas as crianças que moravam além do rio. Que de manhãzinha por ela cruzavam para estudar na escola de minha vila.
Ela era o caminho por onde o seu Libório, um velho português que habitava um rancho depois da ponte pequena que ficava mais além, passava para trazer para os meus Nonnos Pedro e Thereza Gobbi os cogumelos que nos campos adjacentes ele colhia. Cogumelos que incrementavam as incríveis iguarias por eles preparadas.
Anos, muitos anos já haviam se passado desde que o último trem por ela havia circulado, quando até caminhões por lá eu vi passar. Graças a uma fundação tão firme e a uns dormentes tão vigorosos. Claro, caminhões com carga leve… O que não era também algo corriqueiro. Lembro-me apenas desta proeza ter acontecido no decorrer de uma grande enchente em que ela era o único elo de ligação plausível entre a fábrica de papel situada em Tres Barras e a cidade de Canoinhas. Grossas tábuas sobre ela foram estendidas e assim muita gente por lá pode passar.
Por ela eu corria nos tempos em que o charme em preparação física era correr. Era a época em que o Cooper imperava. Tornei-me exímia em colocar os pés exatamente sobre os dormentes…
Encontrava pelo caminho outros pedestres, pessoas andando em bicicletas e até uns carrinhos com rodas sobre os trilhos alguns empurravam.
Era um tempo em que a nossa velha ponte de ferro era ainda negra e reluzente ao sol. E reluzente ao luar. Quantos passeios em noites de lua aquela velha ponte preta viu…
Sim, ela viu pessoas felizes em abraços de ternura. Ela viu pessoas sorridentes. Mas deve ter ouvido mil lamúrias pós laços desfeitos também.

Viu seres desesperados que dela se jogaram para abraçar o rio e dele nunca mais voltar.
Viu alguns pobres coitados que, entorpecidos pele álcool, não perceberam a chegada do trem… e seus corpos lá dilacerados ficaram.
Viu a glória de muitas noivas com seus esvoaçantes vestidos brancos, encarapitadas sobre os seus braços fortes de ferro ficarem imortalizadas em indeléveis imagens captadas por fotógrafos de almas sensíveis.
Não, não faz muito tempo que eu estive lá pela última vez. Estimulada pela juventude de meus amigos Fátima Santos, Priscilla Noernberg e Edinei Wassoaski ousei fazer o velho trajeto entre o restaurante da estação e ela. Imagens do passado pela minha memória desfilaram sem cessar.
Havia, sim, já muito mato pelos caminhos. Mas não estas touceiras de agora que recém vislumbrei em fotos pelaí e que quase impedem a vista para o que foi a nossa deslumbrante ponte preta de ferro.
Havia, sim, já umas nesgas de ferrugem, conferindo-lhe um tom amarronzado. Mas não esta cor indefinível de agora que já não nos mostra o que fora a nossa deslumbrante ponte preta de ferro.
Havia, sim, a possibilidade de darmos uns poucos passos sobre os dormentes para que se pudesse avistar a beleza do rio correndo sob ela. Mas não estes podres pedaços de madeira, deixando imensos espaços entre eles, impedindo a apoteose de um passeio através dela.
Pois é… os que aqui pisaram e este império de serrarias e ferrovias construíram nem rastos deixaram. Porque a tudo apagaram depois que, deste território, até a última seiva exauriram.
Como dizia outra filósofa que esta história em sua memória documentou. Como dizia minha mãe:
—Foram-se e deixaram para trás montes de serragem e de aleijados.
Como escreveu Enéas Athanazio em ‘A Ferrovia do Contestado”, um texto inserido em “O Contestado – Artigos”, seu mais recente livro, publicado em2018 pela Editora Minarete:
“Depois de sugarem, sem tréguas a riqueza da região… desapareceram sem nada deixar. Nem uma escola, um hospital, uma obra pública.”
Deixaram a minha velha e linda ponte de ferro. Que era preta e que hoje, oxidada pelos anos, desgastada e corroída não se sabe ainda por quanto tempo, em pé, ficará.
Sei que dela restarão em minha memória os dias ditosos que sobre ela eu passei…
É… Fiépe, filósofo-andarilho, você já alardeava:
—Eu mesmo piso… eu mesmo apago o rasto…