O filme espanhol “A Pele que Habito” leva o título fiel do original (La Piel que Habito), que estreou em 2011, produzido pelo polêmico diretor Pedro Almodóvar. O roteiro é baseado no romance “Mygale” publicado primeiramente em 1984, de autoria do escritor Thierry Jonquet (e que teve outras edições em 2005, entitulado como “Tarantula”) e no filme – também francês – “Os Olhos sem Rosto” (Les Yeux sans Visage), produzido em 1959.
“A Pele que Habito” nos chama atenção para inúmeros tabus, mas destaca, sobretudo, as implicâncias de ordem ética que residem em relação aos limites da capacidade médica de intervenção sobre o corpo humano e os desdobramentos jurídicos destas questões. O que faz o personagem principal interpretado por Antonio Banderas ao longo da trama é questionar esses limites e o faz do modo seguinte: porque não utilizar os avanços técnicos científicos disponíveis para criar, por exemplo, uma pele humana artificial com melhorias, imune ao fogo e a mordidas de insetos? Uma pele capaz de conter barreiras naturais poderia evitar inúmeras doenças?
Neste sentido, a trama de Almodóvar nos remete a inúmeras reflexões, como por exemplo, quais os limites éticos do poder de intervenção sobre a vida humana alcançados pela ciência e pela tecnologia dos nossos tempos. Ou ainda, quais as prerrogativas que conferem direitos para que as aplicações científicas e tecnológicas alcançadas atualmente sejam aplicadas sobre a ordem da vida humana? Quais as consequências sobre nossa forma de ser e estar no mundo sob tais avanços? O que ainda pode ser considerado humano e inumano diante de tais avanços? Quais os limites? Quais as conseqüências? Quem assumirá a responsabilidade pelos equívocos, distorções e usos indevidos de tais conhecimentos? Haverá a possibilidade de retornar ao estágio humano anterior caso tais avanços tragam resultados equivocados ou indesejados?
Desse modo, Dr. Robert (Banderas), um experiente e renomado cirurgião plástico, utiliza técnicas de mutação e terapia transgênica, para mesclar a pele humana com a de outros mamíferos – no caso o porco, para criar a pele que nomeou de GAL. O faz, prima facie, alegando que interferimos em tudo que esta em nosso entorno, nos alimentos, em nossas roupas, nos vegetais, porque então não melhorar nossa própria espécie com o avanço da ciência?
Sob esses argumentos, bem como o trágico acidente em que sua esposa esteve envolvida, é possível justificar ou até mesmo compreender a motivação e o empenho que levou o personagem de Banderas a buscar incessantemente o sucesso de seu experimento.
Fato marcante a ser observado no longa, é que o experimento médico relatado no filme não tinha unicamente uma versão altruísta ou em prol de um bem maior para a sociedade como um todo. Mas, ao contrário, convergia num sentimento egoísta, de um personagem que não conseguiu superar a perda da esposa. Tal fato nos leva a ter presente que descobertas e avanços científicos não estão somente providos de ideais humanitários, em grande medida respondem a interesses específicos de entidades, grupos e até indivíduos que financiam tais pesquisas, o que significa dizer que tais descobertas podem assumir condições que escapam ao controle dos indivíduos pesquisadores, bem como de âmbitos societários.
Mas o filme não se resume somente a isso. O longa não transcorre na ordem cronológica dos fatos, e aos poucos revela-nos minúcias de uma monstruosidade. Neste sentido, ao mesmo tempo em que o experimento da pele artificial é “testada”, o personagem de Banderas, agrega outro sentimento: a vingança; por isso utiliza como cobaia humana (Vicente) o algoz de sua filha que tentou estuprá-la. Num excesso repleto de dramas comum nos roteiros do cineasta espanhol, não bastasse isso, faz naquele também uma cirurgia de vaginoplastia, em seu centro cirúrgico clandestino chamado El Cigarral, transformando Vicente em Vera.
Neste momento, Pedro Almodóvar coloca em cena, uma das funções do Estado moderno, (“esquecida” mas não desconhecida pelo personagem de Banderas). Ou seja, compete ao Estado desenvolver as condições da vida em sociedade, compor conflitos de interesses ocorrentes proibindo a autotutela dos interesses individuais em conflito, por comprometer a paz jurídica. Ou dito de outro modo, Dr. Robert (Banderas) numa empreitada de vingança, abdica da função soberana estatal e procura por si mesmo fazer “justiça” com suas próprias mãos, mudando o sexo de Vicente sem consultá-lo.
A riqueza do filme reside na complexidade e profundidade dos problemas que coloca em debate, apresentando vários pontos relevantes a serem considerados, como práticas “luxuosas” de cárcere privado – se assim podemos chamar – e de tortura, como o controle absoluto de um ser humano sobre outro, limitando o que se pode ler, comer, assistir ou vestir.
“A Pele Que Habito”, para muitos poderia ser classificado como filme de terror, mas não o terror convencional uma vez que não provoca gritos ou causa medo, mas sim por trazer consigo sempre uma sensação angustiante de mal-estar. O filme por sua vez, pode gerar perigosas e/ou equivocadas interpretações sob o ponto de vista dos diferentes personagens e das relações da vida em sociedade que implicam em razoáveis doses de frustrações e, por isso, emerge do longa demonstrações de obsessões, vingança, torturas físicas e psicológicas, suicídio, estupro, traição, loucura e paixão.
De toda sorte, o filme é válido para ser observado sob a ótica dos avanços das ciências capazes de transformar o corpo humano e seus reflexos, ou ainda para aqueles que por ventura não sentirem-se confortáveis durante a trama, podem apreciar alguns quadros muito bem destacados da pintora brasileira Tarsila do Amaral.
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FICHA TÉCNICA
Diretor: Pedro Almodóvar, Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo, Duração: 133 min. Ano: 2011. País: Espanha, Gênero: Suspense, Classificação: 16 anos
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Sandro Bazzanella. Professor de Filosofia; Coordenador do Curso de Ciências Sociais; Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq; Coordenador do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – Universidade do Contestado. ciê[email protected]
Danielly Borguezan. Advogada, Professora de Direito; Mestranda do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq; Membro do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – GEA e bolsista do Programa do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES. [email protected]