A Casa de Marcílio Dias

Adair Dittrich rememora sua antiga morada

 

 

Não sei em que data teria sido construída a primeira parte de nossa casa de Marcílio Dias. Foi levantada por meus Nonnos Pedro e Thereza, talvez logo que o Hotel Gobbi, que era deles, tenha sido desativado. Talvez tenha sido quando foi aberto, por eles, o Restaurante da Estação.

 

 

Ela foi montada aos poucos. Lembro-me das emendas entre uma parte e outra, visíveis emendas dada a diferença entre as tábuas que foram colocadas nas diversas partes. Sempre paredes duplas. Entre a parte externa e a interna. E entre todos os compartimentos. O que sempre conferiu uma melhor climatização ambiente.

 

 

Inicialmente a casa, parece-me, teria sido quase uma meia-água. Contava com apenas três ou quatro peças. As tábuas eram largas e montadas em sentido vertical, talvez, até, oriundas da demolição do Hotel Gobbi. Os pilares da casa eram feitos de grossos cepos de madeira. De fortes cepos de madeira. De imbuia, naturalmente. Porque a sustentaram por quase um século.

 

 

Esta parte mais antiga tinha um lindo assoalho, quase negro. Que jamais foi carcomido pelas intempéries. De imbuia, também. Tábuas curtas e estreitas. Bem diferente do restante do piso que de madeira era também.

 

 

Algum tempo mais tarde ela foi ampliada. A nova área tinha três peças na parte inferior. Um dos quartos era o quarto da Nonna. Lembro-me que outro era chamado de quarto do tio Pedrinho, o tio que faleceu muito tempo antes de meu nascimento. E havia uma sala que nós chamávamos de varanda escura, pois ela se comunicava com o exterior apenas por uma janela. E mesmo com a porta que dava para a rua, tendo a parte superior envidraçada, não era suficiente para uma total claridade entrar. Um pavimento superior com dois grandes quartos completou esta ampliação.

 

 

Claro que algo mais foi construído para dar um melhor acabamento a esta ligação. Uma bela escada de dois lances levava ao piso superior. Terminava em um minúsculo corredor para onde as portas de cima se abriam. Entre elas uma portinhola que dava para um mundo encantado. Um mundo que ficava entre o teto da parte inferior, da parte velha,e o telhado. Um mundo encantado conhecido pelo nome de águas furtadas. Onde tudo o que não se usava era guardado. Ou onde se guardavam coisas que lá de vez em quando saíam para enfeitar a casa, Um espaço encantado onde o brincar de esconde-esconde era o nosso predileto dos tempos de criança.

 

 

Creio que tenha sido quando meu pai passou a ser fiscal de trem, e então não morávamos mais nas dependências da estação da estrada de ferro, que mais uma parte foi anexada.

 

 

Foi o pedaço que completou a fachada de nossa casa. Assim como dela eu me lembro. Assim como eu a conheci. Com a sala de visitas e um quarto maior, o quarto de meus pais ligado ao resto por um corredor. E ainda mais três quartos no pavimento superior.

 

 

Esta parte de cima da casa era conhecida como sote, talvez uma corruptela da palavra sótão.

 

Uma concepção arquitetônica diferente tinha a fachada. Tábuas mais estreitas, embutidas umas às outras, em sentido horizontal.

 

 

Uma grande varanda, que nós chamávamos de varandão, quase a circundava. Contornava toda a frente e a lateral esquerda. Rodeada por uma balaustrada que finos marceneiros executavam com maestria. Parecia um cercado. Hastes de madeira de uns dois centímetros quadrados e com pouco mais de um metro de altura eram incrustadas em tábuas em sua parte superior e inferior, sem necessidade do uso de pregos ou cola de qualquer espécie. Imagine-se a paciência e a habilidade para se executar os pequenos pertuitos onde estas hastes ficavam encaixadas. Na parte esquerda uma pequena escada de tijolos cimentados dava acesso a um portão do mesmo estilo.

 

 

No frontispício outro portão, bem mais largo, repartido em duas partes. E uma grande escada semicircular que dava o seu magnífico toque à entrada principal.

 

 

Ao final deste varandão, pelo lado esquerdo, havia uma outra porta, envidraçada também, que dava para uma pequena peça, tipo átrio e depois para a cozinha. Ali, mais tarde, por anos, funcionou o nosso banheiro. Com uma banheira branca, de ferro fundido, esmaltada. Mas sem água canalizada ainda.

 

 

E os alicerces deste novo pedaço já eram todos em alvenaria.

 

 

Algum tempo depois um novo bulício alvoroçou minha casa. E deste eu já me lembro melhor. Meu Nonno Pedro Gobbi decidiu fazer um novo anexo do lado direito da casa. Queria um canto para o sossego dele. Uma nova escada, uma nova varanda, embora menor, um corredor que poderia ser também uma saleta e onde havia um divã. Onde muitos pacientes lá em minha vila, em suas urgências, muitos anos depois eu atendi.

 

 

Um quarto para ele, ligado a um banheiro. Mas pasmem. O banheiro era fechado por uma espécie de alçapão. Ao abri-lo via-se uma enorme banheira de metal que deveria ter uns dois metros, ou mais, de comprimento. Como o assoalho distava do solo bem uns dois metros fácil era enchê-la de água pela parte de baixo, pelo exterior. Água fria que vinha de um poço que ficava nos fundos. Água quente que vinha dos tachos que ficavam nos ranchos que lá se situavam também.

 

 

Ranchos onde tudo se depositava, onde os porcos eram carneados e os salames, os cudiguins, as mantas de toicinho, a banha, o torresmo e os presuntos eram preparados. Onde em enormes tachos se fazia marmelada, goiabada e um sem números de outros doces. Onde a roupa era lavada, fervida e alvejada.

 

 

Em uma das dependências deste rancho ficava, anteriormente, aquela grande banheira do meu Nonno Gobbi. Fazíamos de conta que ela era a nossa piscina.

 

 

E ainda havia chiqueiros, galinheiros e um belo tanque de água corrente, com peixes ali a nadar.

 

 

Mas, com a introdução de uma bomba no poço muita coisa mudou. Acrescentou-se uma parte de alvenaria que veio a ser uma área de serviço mais moderna. Com água vinda da caixa que ficava nas águas furtadas. Com banheiro azulejado e ladrilhado. Para onde a nossa velha banheira branca de ferro fundido, esmaltada, foi devidamente entronizada. Com toda a parte sanitária devidamente instalada. E água que era aquecida nos canos, em forma de serpentina, que passavam por dentro do moderno fogão a lenha.

 

 

De repente um banheiro só era pouco. Novo anexo de alvenaria foi acrescentado. Com incrementos do momento. A água então já era aquecida em atuais, para a época, aquecedores a gás.

 

 

A varanda escura, que em realidade era uma sala de jantar ficou pequena. O velho quarto de tio Pedrinho, ali no meio da casa, espremido, já sendo usado mais para guardar mil apetrechos. Derrubaram-se as paredes e mais a que a separava do varandão e surge então uma grande sala. Quase um salão.Todo envidraçado. Com claridade total. E a varanda que era sala e a varanda que era escura transformou-se. Logo uma lareira a tornava aquecida nos tenebrosos dias de inverno. Era a sala da televisão. A sala onde instalávamos o nosso pinheirinho de todos os natais. A nossa sala de jantar.

 

 

Mas voltando no tempo…

 

 

Lembro-me ainda de uma casa que ficava na divisa do nosso terreno com o do vizinho dos fundos. Era a casa onde moravam os agregados e ou os camaradas do tempo de meus Nonnos. Do tempo em que eles criavam vacas e tinham cavalos para puxar o grande carro chamado aranha. Que era similar a uma charrete, mas com quatro rodas, capacidade para transportar quatro pessoas, com assentos estofados e puxada por dois cavalos.

 

 

Claro que havia um grande galpão de madeira, com portões que se abriam para uma rua lateral. A rua que dava para o lado do Hotel e Salão Metzger, hoje Bar do Coringa. Coberto de zinco. Era o local onde a aranha era guardada. Entrava-se dentro dele com os cavalos ainda atrelados.

 

 

O terreno já era grande. Cheio de árvores frutíferas. Parreiras de várias espécies. Uma delas estendia-se por todo o varandão. Eram imensos cachos de uma uva branca que tinham um sabor de saudade. Nonna a chamava de uva da Borgonha. Mas também tínhamos macieiras, pessegueiros, pereiras, ameixeiras, nespereiras, laranjeiras, figueiras, limoeiros, figueiras…

 

 

Uma horta sem fim onde minha mãe de tudo plantava. Ah! O saudoso canteiro de aspargos, o de sálvia e os de outros tantos condimentos próprios da cozinha italiana…

 

 

Quando o senhor Alwin Wagner adquiriu a propriedade de nossos vizinhos, Emílio e Cecy Olsen, ele logo desmanchou a grande mansão para montá-la, peça por peça, na cidade. Mais tarde meu pai adquiriu metade daquele terreno, que do nosso era separado apenas por uma sebe de cedrinhos e outra de buchinhos de jardim. Com outra leva de belas e frondosas árvores. Onde pudemos construir uma garagem para guardar o meu velho Gordini. E outros carros que vieram depois dele.

 

 

Nos fundos minha irmã Avany levantou um belo rancho de flores. Com telhado transparente para deixar entra luz e calor. Flores que suavizavam suas lembranças, que amenizavam o seu viver. Frondosas folhagens que ela cultivava com esmero e carinho. Flores e folhagens que eram vendidos e cuja renda tinha uma finalidade única. Angariar subsídios para melhorar, a cada vez mais, o seu grupo escolar, a escola pela qual ela vivia, a Escola Manoel da Silva Quadros, de nossa vila.

 

 

E um dia a casa veio abaixo. A demolição se fez necessária pois a sua estrutura já causava apreensão. Não foi permitida sua restauração. Há décadas corria um processo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o órgão que faz o tombamento de locais de interesse para as comunidades. E enquanto estas demandas correm não se pode pôr e nem tirar nem prego e nem ripa, nem tábuae nem tijolo do patrimônio a ser tombado.

 

 

Enquanto isto as intempéries corroeram as dobradiças que foram consumidas pela oxidação. Enquanto isto as camadas de tinta a óleo que a cobriam foram sendo consumidas e as paredes nuas ficaram e o apodrecimento tomou conta de tudo. Enquanto isto o tenebroso cupim alastrou-se pelas velhas paredes de madeira…

 

 

Só restam as imagens em nossas mentes e as histórias que lá vivemos.

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