Foi curta a nossa última noite em Lisboa. O dia não havia clareado de todo e já estávamos acomodadas no trem.
Incrível como os portugueses são afáveis, simpáticos, solícitos e prontos para esclarecer e dirimir dúvidas, mostrar as cousas da terrinha, explicando tudo o que é, para que é, como é, para que serve, indicando o melhor roteiro, o melhor caminho, o que ver, o que sentir, o que esperar.
E através das panorâmicas janelas de nosso comboio percorremos planícies e atravessamos campos e plantações.
Olivais imensos perdendo-se no horizonte distante. E em meio a eles cumes de alambiques apontavam para os céus; alambique que, das olivas, extraem o magnífico azeite. E a surpresa. Ficarmos sabendo que a mesma oliveira que produz azeitonas verdes, produz as pretas também. Que a diferença está no tempo de maturação da oliva. Ou é colhida verde ou é colhida madura e pretinha. Sempre achei muito mais saborosas estas pequenas azeitonas pretas portuguesas.
Impressionantes também os bosques apinhados de corticeiras. E, como não poderia deixar de ser um português nos conta a história que uma ilustre dama brasileira estranhou não encontrar as rolhas dependuras nas árvores … e arrematou dizendo que ela de certo ainda esperava que fosse com o carimbo da adega …
Tantas eram as descobertas e tantos eram as conversas que nem tempo para um pequeno cochilo houve e quando nos demos conta já estávamos em Figueira da Foz onde tomaríamos um outro trem que nos levaria a Coimbra.
Novo êxtase nesta erudita cidade. Cidade que exala cultura, que exala ciência, que exala arte há mais de um milênio.
A “Coimbra das canções”, estava sem a infindável algazarra dos estudantes e mais com a balbúrdia mesclada de turistas naquele julho em que as férias escolares na Europa tinham início.
Andar pelas calçadas de antigas pedras polidas pelo trepidante caminhar e impregnadas de milenar cultura que pelos poros em nós se infiltrava.
Sair de lá com “os corações a mil” e a alma lavada por apenas ver os costados de antigos manuscritos guardados em forma de livros naquelas estantes imensas da grande biblioteca.
Sair de lá com a sensação de haver entrado em uma grande adega saturada de cultura e saber, a Universidade com a Sala dos Capelos, sagrado local onde realizadas são as grandes cerimônias acadêmicas como os doutoramentos e a solene entrega dos diplomas de doutor honoris causa.
Deixar Coimbra e seguir rumo à cidade do Porto. Seguindo orientações precisas desembarcamos logo na primeira gare a fim de chegarmos a tempo para uma visita guiada a uma das caves do famoso vinho.
Torres circulares, de carvalho, da altura de um chalé, enfileiradas na imensa adega, cheinhas do precioso líquido, estendiam-se a nossa frente.
E então aprendemos, passo a passo, em uma didática aula, a forma de obtenção deste vinho diferente, de um sabor diferente, de virtudes diferentes, o cristalino vinho do Porto.
Um vinho que não era destinado apenas como aperitivo e ou digestivo. Era também medicinal.
Um cálice do tradicional vinho do Porto era um ingrediente obrigatório em todas as formulações medicamentosas que os farmacêuticos de outrora aviavam sob receita médica.
Vinho do Porto que lembra a minha infância. Que lembra um velho camafeu que minha Nonna Thereza Gobbi usava. Um velho camafeu que tinha a branca imagem de uma cabeça de mulher, com seus cabelos presos em forma de peruca, recortada em um fundo cor de tijolo. E no verso a inscrição “Adriano Ramos Pinto Porto”, uma original peça de publicidade da época onde Porto para mim era apenas mais um sobrenome.
E depois a correria para subir a colina da cidade, conhecer as tendas, comprar um belo xale português, artesanalmente elaborado, e descortinar do alto a bela paisagem, ver o rio e ver o mar.
Tomar o ônibus que nos deixaria na mesma gare em que chegamos, pois lá estavam as nossas malas muito bem cuidadas no guarda-volumes. E foi um intenso corre-corre para não perdermos o comboio que nos levaria a Madrid. E a sempre inestimável solicitude daquela gente em nos ajudar com nossas compras, com nossa bagagem, literalmente colocando-nos dentro do trem que partia antes mesmo que tivéssemos conseguido encontrar nossos assentos.
E assim seguimos até a estação de Entroncamento onde fizemos uma baldeação para outro comboio, o direto Lisboa a Madrid. E dentro dele a nossa verdadeira primeira refeição de um intenso e proveitoso dia que passáramos a frutas e algumas azeitonas, além da degustação do vinho do Porto.
Em nossa solitária cabine, na escuridão da noite, eu pensava em começar os meus rabiscos com as memórias da viagem. Adormeci antes de pegar a caneta. E apenas agora a retomo, decorridos quase trinta anos desta nossa aventura pelo velho continente.
Tínhamos programado tomar o café da manhã ainda no carro-restaurante onde havíamos jantado na véspera. Mas o nosso acordar aconteceu somente quando o chefe-de-trem nos avisa que já estávamos em Atocha, Madrid, estação final.