A moda como criação do jornalismo

A maneira como nos vestimos deve ser entendida como um espelho que reflete aspectos mais amplos da nossa cultura

O jornalismo de moda, como o próprio nome sugere, é uma parte integral do universo da moda. Dessa forma, se a moda pode ser definida como a criação de um valor simbólico para o ato de se vestir, as mídias fashion – incluindo revistas, colunas de moda em jornais, televisão, blogs e outras plataformas – desempenham um papel indispensável nesse processo simbólico de valorização.

Acredita-se que boa parte da valorização e da importância que concedemos à moda atualmente pode ser explicada pela interferência do jornalismo no campo. De fato, trata-se de um comportamento relativamente recente, como quase tudo que envolve a moda. O desenvolvimento do jornalismo de moda acompanhou a expansão das revistas voltadas para o público feminino nos anos 1950, na mesma época em que a calça, a blusa decote e o macacão feminino se tornaram peças socialmente aceitáveis para as mulheres. É perceptível, portanto, que o jornalismo moldou e, de certa forma, até mesmo criou a ideia de moda que temos hoje.

Se o mundo da moda parece um assunto complicado para muitas pessoas, carregado de ambivalências e temas multifacetados, o jornalismo de moda se apresentou desde a sua origem como um discurso capaz de tornar esse mundo compreensível. Em seu campo de atuação, o jornalismo oferece duas abordagens distintas para o tema: de um lado, como um discurso democrático capaz de explicar para um grande público as características visuais de estilos individuais e coletivos; do outro lado, como um discurso capaz de reforçar a distinção entre indivíduos a partir do seu estilo. Ambas as manifestações são partes indissociáveis da função simbólica que o jornalismo desempenha historicamente no campo da moda.

Para ser um jornalista de moda também não basta simplesmente escrever qualquer coisa sobre ela. A maneira como nos vestimos deve ser entendida como um espelho que reflete aspectos mais amplos da nossa cultura, atuando como uma articulação entre a indústria da moda e a consciência pública sobre essa produção. Seguindo essa perspectiva, os jornalistas de moda atuam como uma espécie de “profetas” que frequentemente identificam e antecipam as mudanças dramáticas que ocorrerão em nossa cultura em seu aspecto mais amplo.

Além disso, os escritos sobre moda também contribuíram significativamente para a história ideológica e para as normas culturais estabelecidas em cada época, especialmente no que diz respeito às mulheres. O jornalismo de moda ajuda a moldar não apenas visões de beleza e feminilidade, mas também atitudes em relação ao consumo e até mesmo em relação à identidade nacional. A mídia fashion também tem estado na vanguarda dos desenvolvimentos em marketing, criação de imagem e publicidade.

Estamos acompanhando uma crise no jornalismo de moda?

A indústria global da moda movimenta mais de um trilhão de dólares a cada ano. Os meios de comunicação em massa a serviço dessa indústria são igualmente globalizados e também movimentam montantes impressionantes. A título de exemplo, a Vogue em 2015 teve uma audiência internacional de quase treze milhões de leitores na sua versão impressa e mais de trinta milhões de usuários únicos mensais em seu site.

Indiscutivelmente, a moda se tornou o discurso global do momento, com uma cobertura maior pela mídia do que qualquer outro assunto similar. Sua abrangência se estende desde o blog da Ex-Primeira-Dama dos Estados Unidos da América, Michelle Obama, até a cobertura de centros de moda emergentes e periféricos, a exemplo da Nigéria. A mídia fashion está por toda a parte e se expressa de diversas formas distintas: a moda se tornou temas de filmes, programas de TV ou mesmo séries sobre backstages. Enquanto isso, inúmeros designers ousam cada vez mais na criação dos shows de suas novas coleções, ultrapassando os limites da passarela – desfiles passam a acontecer em hotéis, desertos, pontes suspensas e por que não também em saltos de paraquedas, como foi a última exibição de inverno da designer Iris Van Herpen? Os grandes nomes da alta costura cruzaram as fronteiras do mundo fashion, estabelecendo parcerias com marcas de outros setores (como a Pepsi e a Coca-Cola) ou mesmo criando fundações de arte para preservar suas melhores criações (como a Louis Vuitton).

À medida que o alcance da moda cresceu na sociedade, também cresceu o alcance da mídia da moda. Hoje, jornais, revistas de moda, programas de televisão e a internet nos bombardeiam com informações e conselhos sobre vestuário e aparência. Estamos saturados de imagens e referências de moda. O jornalismo impresso tradicional tem sido desafiado pelo cinema, televisão, blogs, transmissões ao vivo de desfiles nas passarelas, mídias sociais de celebridades e estilistas, filmes de moda e varejistas on-line como fontes de informação e inspiração sobre o que vestir e como se vestir. As pressões comerciais e o poder conglomerado fizeram com que muitos jornalistas se sentissem apenas como assessores de imprensa para estilistas, limitados às relações públicas.

Para alguns observadores, tais desenvolvimentos – combinados com o ciclo cada vez mais rápido da moda, em que as roupas estão nas lojas antes mesmo dos jornalistas de moda terem a chance de opinar sobre elas – levaram o jornalismo de moda tradicional a um ponto de crise. Já em 2004, Stéphane Wargnier, então diretor de comunicação da Hermès, argumentou que o jornalismo de moda contemporâneo foi enfraquecido por uma “perda de identidade”. Isto levanta a questão de qual é exatamente essa identidade, e qual é a função histórica do jornalismo sobre a moda.

O futuro da profissão

Acredita-se que hoje, os mecanismos do jornalismo de moda mudaram e sua função enfrenta desafios, particularmente em razão do fast fashion e das mídias sociais. A escrita sobre moda precisa agora trabalhar muito mais sobre o processo criativo das roupas e da visão criativa dos estilistas. Tal processo demanda tanto um conhecimento maior sobre a história do campo, como também de um contato mais próximo com os outros atores desse universo.

Dito isto, um mundo do qual a moda foi banida seria um mundo sem discursos, um mundo vazio, ou seja, sem cultura ou comunicação. Um mundo assim não pode, é claro, existir, ou se tivesse que existir, não teria seres humanos. E se o jornalismo de moda é, portanto, o fornecedor do valor simbólico da moda, sem ele não haveria, decerto, moda alguma.

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