A proposta de reanexar municípios é salutar

A descentralização que não deu certo

 

 

Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner*

 

 

Anunciada pelo ministro Paulo Guedes, proposta governamental de reanexar municípios tem o mérito de provocar o debate. Dificilmente passará, do modo como foi sugerida, porque afronta a força da classe política, conjugada no fisiologismo, no corporativismo e no patrimonialismo. Por outro lado, a questão é mais ampla, interessa ao contribuinte e estão em jogo os interesses pelo desenvolvimento do País. Entre argumentos contrários, nobres justificativas de descentralização se mesclam com interesses pouco republicanos, causando efeitos necessariamente discutíveis.

 

 

O interesse anunciado do governo federal é forte, justificado na economia dos recursos públicos que saem do bolso de quem trabalha e gera riqueza. Para tanto, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Pacto Federativo propõe reanexar, aos vizinhos, municípios com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% de sua receita total. Segundo o governo, 1.254 municípios se encaixam nessas condições hoje e seriam incorporados a partir de 2026, representando 22,5% do total de municípios brasileiros e uma economia considerável, ainda não informada.

 

 

 

Entre 1989 e 2007, foram criados 1.345 municípios, um aumento de 24,5%. Sob o importante argumento da descentralização, a criação dos entes federativos foi orientada pela premissa de gerar autonomia política, administrativa e financeira às comunidades.  Pode-se supor que esse movimento emancipatório tenha impulsionado as economias locais e tido ampla aprovação das comunidades atendidas. Justificou-se o fortalecimento das populações mais pobres, sem capacidade de gerar renda própria, portanto, mais necessitadas dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

 

 

 

Reconheçamos a complexidade do tema e a dificuldade de avaliar até aonde vão as sempre boas intenções das quais o inferno está cheio. Esse processo foi respaldado por nobres princípios republicanos de descentralização e fortalecimento das comunidades microrregionais. O cansaço nacional com o Estado centralizado e pouco sensível às justas demandas dos cantões e das extremidades geográficas foi devidamente incorporado pela Constituição Federal. Nessa direção, a criação de novos municípios pareceu a melhor resposta à afirmação da vontade geral – democracia no mais elevado grau.

 

 

 

Contudo, o processo não diminuiu o fisiologismo, o corporativismo político, tampouco o patrimonialismo. Justamente ao contrário, dissipou esses problemas republicanos aos rincões federativos, confluindo legítimas demandas sociais com os interesses da classe política, amplamente fortalecida. Nesses momentos históricos, é necessário dizer, o instinto de sobrevivência manifesta toda a astúcia, gerando a criatura política: pele democrática, carne clientelista, espírito de corpo e ossatura jurídica, o  “Leviatã” da democracia de massas é um ser ambíguo, habilmente generoso e devorador.

 

 

Na prática, a criação de municípios tem aspectos positivos, melhoria urbana, educação, saúde e nome no mapa. Isso é feito com recursos do contribuinte, que também banca as despesas de pessoal e manutenção da estrutura administrativa. Em muitos casos, esses recursos se destinam exclusivamente a tais gastos, em detrimento da prestação de serviços às comunidades. O caso das câmaras de vereadores então é o mais emblemático. Com autonomia para fixar os próprios salários, demonstram toda a autovalorização, sem dispensar regalos e estruturar o nefasto clientelismo. Investimento que é bom, nada.

 

 

 

Com tudo de bom e de ruim, o problema é que a conta não fecha. Entre 2013 e 2014, dois projetos de lei do Congresso Nacional foram vetados pela então presidente Dilma Roussef. Como informa a reportagem de Olavo Soares, na Gazeta do Povo, de 21/06/2019, o executivo vetou em nome da responsabilidade fiscal, justificando que “permitirá à expansão expressiva do número de municípios, aumentando despesas com a manutenção da estrutura administrativa e representativa. Além disso, esse crescimento de despesas não será acompanhado por receitas equivalentes”. Alguma dúvida?

 

 

 

Como explica a economista Cristina Brandt, consultora legislativa do Senado Federal em 2010, O conjunto de regras de distribuição dos recursos do FPM aumentou as distorções na partilha das transferências de recursos. A criação desses municípios foi motivada por razões privadas, penalizando comunidades de municípios maiores com a perda de recursos para municípios cujas transferências são absorvidas para o custeio dos “bacanas”. Os custos fisiológicos, corporativistas e patrimonialistas dessa emancipação clientelista se mostram “desproporcionais às suas populações”.

 

 

 

Nisso tudo, o fisiologismo representa a necessidade do político e do burocrata público de sobreviver no interior da física do poder. Para isso, cria justificativas a seus interesses, que viram leis. O modus operandi é a cooperação interesseira que se manifesta no corporativismo desse corpo político. Sabem tanto quanto qualquer cooperado que quem coopera cresce. E o êxito fisiológico do corporativismo penetra como óleo nas engrenagens do poder, permitindo a cada um o uso do patrimônio público como extensão do seu patrimônio privado. É o patrimonialismo. Tudinho às custas do contribuinte, melhor maneira de enriquecer. Depois, a culpa é do rentista!

 

 

 

Precisamos pôr na balança e ver o que fica e o que vai fora. Como está, está errado porque o contribuinte quer seriedade no trato do patrimônio público e não tem a obrigação de doar sangue a vampiros. É preciso pesar benefícios e prejuízos que vão ficar e sair da cangalha no lombo do povo. A descentralização deve ser o caminho do Pacto federativo, mas a estrutura estatal não pode ser tão cara, nem empregar malandro que enriquece às custas do dinheiro alheio. Não creio na viabilidade política da proposta e receio que nem o ministro Guedes o crê. Mas um meio termo terá de surgir dessa celeuma.

 

 

 

*Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner é sociólogo

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