Estou nas ruas de minha cidade. Com as mãos postas, em devoção, e intimamente ligada ao místico mundo que naquele momento me envolve.
Estou nas ruas de minha cidade. Não estou só. Somos muitas. Crianças e adolescentes que, no Sagrado Colégio, recebem o ensino para a vida. Em uniforme de gala descemos da colina e seguimos, em silêncio tumular, até a Igreja Matriz. Em silêncio tumular, mas com uma euforia imensa que a todas nós envolve. Porque este é um dos poucos dias em que poderemos apreciar os prédios e as casas de nossa cidade.
Da cidade, por algum espaço de tempo, a terra de todas as meninas, que no Sagrado Colégio, como alunas internas, estudam. Espaços desconhecidos abrem-se à nossa vista. Vasculhamos, com avidez, o solo e as paredes, os muros, as cercas, as portas que, aos poucos, aos nossos olhos se desvendam.
Era um tempo em que, dentro das vetustas paredes de nosso educandário, por semanas, permanecíamos. Como eram esperados estes poucos dias santificados, em que, pela cidade toda, poderíamos desfilar. Mesmo que em fila, mesmo que de mãos postas, mesmo que em meditação e preces pelas ruas pudéssemos andar.
E o esperado dia santificado, o dia de Corpus Christi, era um desses dias.
Com muita antecedência, este glorioso momento era preparado. Com muita antecedência, os tapetes que engalanariam as ruas de nossa cidade, eram preparados.
Uma de nossas obrigações era a de retirar minúsculos ramos dos galhos de cedro. Escolhendo, sempre, aqueles que ainda tivessem tonalidades amareladas em suas extremidades. E as espículas dos cedros e ciprestes em nossas mãos se infiltravam. E aquele colorido verde impregnava o epitélio todo que os dedos circundava. Mas eram tardes de festa. Porque das obrigações da sala de estudos nós nos livrávamos.
Mas não era apenas com finos raminhos dos ciprestes que se enfeitavam as ruas para a passagem do pálio com o sacerdote tendo em suas mãos o ostensório com a hóstia consagrada.
Montes de serragem aportavam ao nosso Sagrado Colégio. Serragem que, em enormes tachos, as freiras que se encarregavam da cozinha, ferviam com corantes das mais variadas tonalidades. Era um tempo em que estes corantes eram um tanto pálidos. Não impregnavam a serragem como os fulgurantes tons de hoje.
E havia também as chapinhas de garrafas. As chapinhas que vedavam todas as garrafas de gasosa e de cerveja, de cachaça e de vinagre. Nem se imaginaria, que em algum futuro, o mundo seria transformado em um produto chamado plástico.
As chapinhas eram todas envolvidas em um papel fininho, brilhante, multicolorido, que eu conhecia pelo nome de ourinho. Porque em ourinho eram enleadas as barras de chocolate, em ourinho eram enleados os ovos e os coelhinhos que vinham em nossos ninhos de Páscoa. Muitas balas e chocolates finos também embalados assim chegavam às mãos do povo naquela época.
É costume, em inúmeras cidades, armazenar-se, já desde a quarta-feira de cinzas, tudo o que poderá ser usado para os desfiles de carnaval do ano seguinte. E nós guardávamos, durante um ano inteiro, os ourinhos e as chapinhas e tudo o mais que aparecesse e que pudesse ser usado para fazer, enfeitar e colorir os tapetes da procissão de Corpus Christi.
Além das chapinhas e ourinhos que envolviam chocolates, armazenavam-se quilos e quilos de borra de café e de resíduos da erva-mate usados para a preparação do chimarrão e do chá. Borras e resíduos formando imagens e insígnias nos tapetes, em sua cor original, ou incrementados com os corantes de tecidos que se usavam então.
Imagens sacras, artisticamente reproduzidas por todos estes materiais, enfeitavam as ruas. Lá se viam imagens de Jesus abençoando o povo, imagens de Maria, de brancas pombas da paz, significando a presença do Divino Espírito Santo.
Antes de clarear o dia as equipes já se encontravam nas ruas a fim de que, no momento certo, tudo já estivesse concluído. Colaboravam na confecção dos tapetes alunos e professores, tanto do Sagrado Colégio, como do Grupo Almirante Barroso, na época os dois educandários de nossa cidade. Mas não só. Senhoras do Apostolado da Oração tinham longos trechos a seus encargos, bem como a turma da Cruzadinha, das Filhas de Maria, dos Marianos, dos clubes da cidade, como o Operário e Canoinhense. Empresas particulares colaboravam em vários trechos. A cidade se transfigurava e vivia a beleza desta transfiguração.
As janelas das casas por onde passávamos eram enfeitadas com tapetes e vasos carregados com coloridas flores.
Uma missa solene precedia a procissão. Oficiada sempre pelo padre vigário, auxiliado por mais dois outros sacerdotes. Paramentados com vestes especiais. E mais o véu umeral, uma grande estola bordada usada para a bênção com o ostensório.
Salvo um que outro pigarro, não contido pelas gargantas já há muito desgastadas pelo uso contínuo, nem um pio se ouvia no desenrolar de toda esta celebração.
O Coral, que se chamava “Scholla Cantorum Santa Cecília”, regido pela maestrina, professora Irmã Maria Carolina Goss, estava sempre presente no decorrer de todo o cerimonial, acompanhando com suas vozes, toda a procissão que só teria início após o término da Santa Missa Solene.
Irmã Maria Carolina regia o Coral, enquanto dedilhava as músicas nas teclas do harmônio. Não tínhamos ainda aquele magnífico órgão que somente muitos anos mais tarde em nossa Matriz foi entronizado. A Missa Solene era toda cantada em latim.
Alguns músicos, em violino e flauta, solavam e acompanhavam o Coral, transformando a nossa Igreja em uma verdadeira sala de concertos. Entre eles, no violino, Sílvio Alfredo Mayer e minha irmã Avany. Na flauta, Joaquim de Paula Vieira.
Naquele tempo a procissão tinha início e fim, como até hoje tem, nas escadarias da Igreja Matriz Cristo Rei. Mas seu percurso era muito mais longo. Da praça em frente, que de praça só tinha o nome, o séquito seguia em direção à rua Caetano Costa, descendo por ela até à Vidal Ramos. Contornava-se a praça Lauro Müller e então o triunfal retorno.
Era sempre imensa a multidão que acompanhava as procissões do Corpo de Deus. Ruas repletas. As pessoas usavam os seus melhores trajes. Homens com seus ternos, camisas de colarinho e gravata. Mulheres com seus mais finos vestidos, casacos e tailleurs. E todos, em silêncio, compenetrados, em fila, acompanhando o pálio, sob o qual seguia o sacerdote celebrante, portando em suas mãos o ostensório com a hóstia consagrada. Pálio sempre carregado pelos decanos da congregação dos Marianos.
Do itinerário constavam três solenes estações. Em cada estação, um altar. Em todas, preces, cânticos, aspersão de água benta, evoluções do turíbulo, espargindo incenso, e, finalizando, com o sacerdote oficiante elevando o ostensório em solene bênção. A quarta e última estação era a que ficava defronte da Igreja.
Então os ritos finais foram aos céus. Chegada era a hora de retornamos ao nosso reduto encantado no alto da colina do Sagrado Colégio. Como sempre, em silêncio… Mas já não mais de mãos postas e em meditação. Os olhares para as margens já não precisavam ser sub-reptícios… Já se poderia volver as cabeças… sem reprimendas.
Um almoço de dias de festa com galinha assada e recheada esperava-nos. Com macarrão. E com sobremesa de sagu. Porque era dia de Corpus Christi.
E, após o almoço, o grande recreio que se estenderia até a hora do grande e grave silêncio que se iniciaria às sete horas da noite.
Neste intervalo, ler, jogar vôlei, correr e trocar palavras revivendo a grande caminhada do dia.