Na modernidade o judiciário se constitui num dos poderes de Estado
Dr Sandro Bazzanella*
Iniciemos nosso percurso reflexivo com a precisão do termo expresso pela língua portuguesa. “rá.bu.la” s.cdd. (o/a) – (…) 2. Pejorativo Advogado(a) charlatão(ona), reles, ordinário(a) e não raro ignorante: esse teu advogado não vai resolver nada, é um rábula! 3.Fig. Pessoa que fala demais, sem concatenar as ideias, quase sempre para enganar. 4 s.m.(o) 4. Papel teatral de pouca importância; ponta. 2 Do latim rabula. 1 rabulão (rà) s.m. (1. aum. reg. de rábula; grande rábula; 2. aquele que só diz rabularias; fanfarrão; gabarola); rabular (rà) v.i. [1. dizer ou fazer rabulices; (…) 2. fig. palavreado oco, sem nexo, próprio de quem quer enganar; palavrório; 3. fanfarronice; gabarolice (Fonte: Grande Dicionário Sacconi).
Na modernidade o judiciário se constitui num dos poderes de Estado. Nesta condição é um poder de várias faces. Nos estados constitucionais apresenta-se como guardião da constituição. Em outros estados ocidentais regidos por cartas de princípios observa em suas decisões preceitos, costumes e tradições comunitárias. Nos últimos dois séculos se apresenta como mediador dos conflitos entre poder legislativo e poder executivo. Garantidor de direitos individuais, de direitos civis. Coercitivo e punitivo diante das afrontas à ordem e a propriedade. Mas, sobretudo um poder cujo exercício caracteriza-se majoritariamente pela oferta de justificativa legal à ordem vigente e ao estado de exceção perpetrado pelo poder soberano em determinadas circunstâncias quando concebe ameaça à sua sobrevivência.
Em sociedades desenvolvidas e estáveis social, política e economicamente, o poder judiciário tem seu poder circunscrito a garantia da legalidade. Sua ação é circunscrita. Está desprovido de interesses no protagonismo na cena política. Juízes, desembargadores, procuradores e advogados têm atuação discreta. Seu exercício profissional não se sobrepõe em importância ao exercício de outras categorias profissionais. Porém, em países (sub)emergentes, ou subdesenvolvidos, o poder judiciário assume em determinados contextos protagonismo político passando a negociar e a justificar interesses específicos com o poder legislativo e com o poder executivo.
Nas sociedades subalternas, o judiciário constitui-se numa corporação cujo modus operandi se manifesta em duas direções aparentemente distintas, mas convergentes em sua finalidade. Num primeiro momento, confere status a seu fazer a partir da tecnicidade operacional do ordenamento jurídico. Sacralizam e, assim retiram do uso comum por meio de uma intrincada linguagem técnica, interpretativa o ordenamento jurídico. Ou seja, excluem os indivíduos comuns, os sujeitos de direito a possibilidade de compreender suficientemente o labirinto jurídico, a partir do qual juízes e outros membros da corporação judiciária negociam e tomam decisões sobre a vida dos indivíduos. Sob este aspecto é fundamental reconhecer a violência imposta pelo direito. Num segundo momento, mas decorrente do primeiro ao complexificar e retirar do uso comum o ordenamento jurídico, os rábulas do judiciário apresentam-se como os paladinos da verdade e da moralidade pública e social. Ou seja, conferem à sua tecnicidade decisionista, a partir dos interesses políticos majoritários em jogo, uma desmesurada valorização profissional, pecuniária e, sobretudo impõe aos indivíduos e cidadãos condição inquestionável sobre suas interpretações e decisões.
O que o decisionismo político dos rábulas do judiciário nos permite compreender de forma clarividente é que o fundamento último da lei, de todo e qualquer “ordenamento jurídico” reside sobre a violência. A justiça é inatingível. Ou dito de outra forma, aquilo que nomeamos como justiça é a menor injustiça possível estabelecida a partir de negociação política que afirma que a decisão alcançada é legal. O alcance suficiente desta condição nos permite compreender que estamos submetidos a um pleno estado de exceção. O estado de exceção se manifesta quando o ordenamento jurídico é suspenso a partir de decisão política por parte dos grupos que exercem o poder soberano, submetendo todo e qualquer indivíduo a decisões supostamente legais, mas cujo processo transcorre a revelia das garantias legais expressas em carta constitucional. Ou seja, a decisão imposta em determinada circunstância sobre o indivíduo é resultado de negociações que violentam garantias, entre elas a adequada produção de provas e contra-provas, o amplo direito de defesa, o segredo de justiça, a imparcialidade na tomada de decisão e, consequentemente a imputação de pena.
Solicitamos ao aligeirado leitor evitar concluir rasteiramente que o argumento acima expresso se apresenta como defesa irascível de determinadas personalidades políticas, mas de reconhecer de que o estado de exceção a partir do qual se conduziram processos e imputação de pena a tais personalidades é extensivo a todo e qualquer indivíduo. Ou seja, neste contexto estamos todos submetidos a um estado de exceção permanente, vidas nuas destituídas de garantias jurídicas suficientes. A comprovação de tal condição se encontra de forma explicita em 40% da população carcerária brasileira, estimada em 2018 em torno de 840 mil presos que se encontram encarcerados sem o trânsito em julgado de seus processos.
Para além da argumentação exposta até o presente momento é crucial constatarmos que a máquina jurídica (mas este fenômeno também se apresenta em perspectivas variáveis em âmbito mundial) opera constantemente sobre o vazio jurídico produzindo e justificando o permanente estado de exceção a que está submetida a sociedade brasileira. Esta argumento se comprova (solicitamos uma vez mais evitar conclusões precipitadas e rasteiras) nos vazamentos das conversas entre procuradores e juízes da “Operação Lava-Jato” revelando imparcialidade na instrução de processos; negociações entre os rábulas para forjar provas; negociações obscuras em torno de delações premiadas; acordos entre as diversas instâncias do judiciário na condução de processos e, tantas outras situações divulgadas pelo jornal online “The Intercept”, ou por divulgar conformando uma gambiarra jurídica cujos interesses ainda não se apresentam compreensíveis de forma suficiente.
O paradoxo que reside no transcurso deste estado de exceção permanente é a “crença” majoritariamente difundida no senso comum da população de que se está fazendo “justiça”. Desconsidera-se de que o princípio da isonomia não se apresenta no tecido social brasileiro na medida em que alguns são mais iguais que outros perante a lei. Ou ainda, de que a lei não é um fim em si mesma, o que significa ter presente de que no âmbito jurídico afirmar que os fins justificam os meios, para além de uma aberração jurídica é afirmação do permanente estado de exceção, cujos resultados são devastadores, basta ter presente a experiência do estado legal nazista na implementação dos campos de concentração como estados permanentes de exceção. Ou dito de outra forma, o paradoxo de nossa condição contemporânea reside na promessa política e estatal de plena segurança jurídica, mas que na prática se apresenta na afronta cotidiana à vida, à liberdade, aos direitos individuais e sociais demarcando condição de plena insegurança jurídica.
A conformação de uma sociedade minimamente civilizada requer o reconhecimento e a garantia do princípio da isonomia, da igualdade dos indivíduos perante a lei. Ou seja, de que o ordenamento jurídico é resultante do consenso entre os membros de uma determinada sociedade em relação as garantias de direitos individuais, civis e sociais. A sociedade brasileira é acéfala a tais pressupostos jurídicos civilizatórios, basta ter presente que o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituição que deveria regular os excessos do poder judiciário é presidido pelo presidente do Superior Tribunal Federal (STF). A situação se apresenta num cenário delirante, pois é como colocar o rato para cuidar do queijo.
A acefalia social brasileira em relação ao estado de exceção em curso também se apresenta na simplória aceitação do grau de rebuscamento técnico levado à público cotidianamente pelos rábulas retirando dos indivíduos a possibilidade de interpretação e compreensão minimamente adequada da lei. Nesta direção, urge uma reforma do poder judiciário tornando-o mais eficiente e eficaz nas respostas as demandas da sociedade brasileira. No atual contexto, o poder judiciário se apresenta, para além do que já foi exposto, como um poder moroso, perdulário dos parcos recursos públicos e, sobretudo como fiador do estado de exceção a que estamos submetidos. Diga-se ainda, de passagem que é escandaloso deparar-se com a suntuosidade dos prédios (Fóruns) do judiciário nos mais ermos rincões do país, quando nestas mesmas locais espraiadas Brasil afora escolas públicas não possuem condições decentes para acolher crianças, adolescente e jovens. É vergonhoso, mas é preciso ter presente que em pleno século XXI, parte significativa de estabelecimentos de ensino se encontram desprovidos de bibliotecas, de condição básica para o ensino, entre tantas outras carências, contrastando com opulentos e cartorários prédios do judiciário.
Sob todos estes aspectos torna-se urgente abandonarmos nossa condição de uma sociedade menor, pueril e paralisarmos a máquina jurídica produtora de permanente estado de exceção. Evidentemente não se trata de aniquilar o poder judiciário. Interpretar os argumentos aqui apresentados desta forma é raciocínio tosco, grotesco e anticivilizatório, mas de ter presente que quanto maior o poder judiciário menor é a capacidade de consenso, de confiança e desenvolvimento de uma sociedade. É preciso tomar a decisão crucial de canalizarmos esforços e investimentos na educação com intuito de voltar a estudar o direito e não meramente repassá-lo na forma de uma rebuscada técnica que o sacraliza, que o retira do uso comum e consensual entre indivíduos e cidadãos promovendo a violência do direito. Precisamos de mais juristas com a compreensão de que a lei não é um fim em si mesma, mas a expressão da garantia das liberdades individuais, civis sociais e políticas alcançadas por consenso pelo tecido social. Há a necessidade de juristas que compreendam e garantam socialmente o do princípio da isonomia e, menos rábulas operadores do direito com um fim em si mesmo produzindo contradições, violências e estado de exceção. Esta é uma dentre outras questões que necessitam ser enfrentadas pela sociedade brasileira como para que em algum momento possamos alcançar as bases de uma sociedade suficiente e desenvolvida.
Para além do esforço civilizatório acima apresentado, o que se apresenta na atualidade é a desconfiança generalizada do tecido social em relação as suas instituições e, sobretudo em relação ao poder judiciário que operacionaliza o permanente estado de exceção em curso. Neste contexto, o exercício da potência do pensamento é crucial para evitar a instrumentalidade da razão em seu afã pragmático e utilitário em relação as questões sociais e vitais. “O sono da razão produz monstros” (Francisco de Goya 1746-1828).
*Dr Sandro Bazzanella é professor de Filosofia