Flanando sob as águas eu venho há tempos imemoriais desde a longínqua grande água salgada que impetuosamente se lança, dia e noite, em forma de imensas ondas contra rochedos e margens arenosas. Venho desde tempos imemoriais desde aquela grande água salgada que é azul porque nela refletida está a cor do infinito céu.
Flanando sob estas águas desde onde elas são gélidas e onde já as sinto cada vez mais gélidas vejo nos longes diferentes ilhas que nos ontens ali não existiam. São brancas ilhas congeladas, pedaços desprendidos da calota-mãe do nosso meridional mundo.
Há milhões de anos caminho com meu manto de cristalinas águas desde aquela imensidão azul e salgada e sigo atravessando este cone líquido que desce entre escarpas e rochas e que despenca em turbilhões encantando a visão e a alma de metade do mundo desde remotas eras.
Por milênios flanei meu corpo fluido, meu corpo líquido por este maravilhoso e suave leito de espumas acolchoado num ir e vir sem fim, num subir e descer sem fim, no aconchego de milhares de outros etéreos viajantes que, como eu, trafegam desde os finos filetes das águas que nascem nas colinas e nas montanhas e deslizam serpenteando pelas planícies ou cascateando pelos penhascos rumo ao mar.
Havia um tempo em que, nestas águas todas, era um imenso prazer deslizar junto com inúmeros seres animados que nelas viviam aos milhões, com seus corpos de escamas reluzentes, seguindo o fluxo da vida, o fluxo do amor.
E no caminho, entre florestas de araucárias o som dos passarinhos era a serenata e o enlevo nos sóis dos severos invernos ou dos cálidos crepúsculos das primaveras.
Havia encontros ao redor das fogueiras, ao luar, com homens e mulheres de pele reluzente que destas águas tiravam a carne e das araucárias o sagrado pão em cada estação fria.
E as suas aldeias construídas sempre foram bem acima das margens aonde as águas jamais chegavam.
E neste ir e vir, neste subir e descer de meu corpo fluido e líquido por estas serpenteantes e cristalinas águas eu só encontrava verdejantes relvas e reluzentes seixos.
E então vieram as mudanças que eu presenciei com tristeza imensa. Acompanhei com uma dor que doía no fundo mais fundo o avanço de outros homens que chegaram, homens que não tinham o corpo cobreado e reluzente e que foram construindo outras aldeias bem perto das margens que há milênios se estendem sob este mesmo céu. E foram deixando suas marcas.
As minhas águas, sim, as minhas águas, porque é por elas que eu flano o meu corpo sutil, o meu corpo líquido desde que o Grande Pai começou a construção dessa Terra e desse Universo. Pois é, foram deixando as minhas águas a cada tempo mais turva, mais putrefata, mais barrenta, mais cheia de miasmas e mais carregada de detritos mil. Restam agora, nos fundos dos rios e dos lagos e lagoas, apenas uns seixos rolados envoltos em lama de indefinida cor.
As florestas que margeavam minhas águas foram diminuindo e a cada árvore que tombava o que rolava para o fundo do meu leito era um pedaço de terra, um pedaço de barranco sem vida.
Os seres vivos, amiguinhos que me acompanharam por milênios, foram diminuindo e as pessoas que os procuram agora para prover sua mesa e saciar sua fome quase não os encontram mais. E o que eu encontro hoje no fundo dos leitos destas águas serpenteantes, outrora cristalinas, não mais é o leito macio onde eu me derramava feliz.
Continuo no meu ir e vir e no meu subir e descer por estas águas porque para o meu corpo fluido, para o meu corpo líquido não há empecilhos. Quase não consigo descrever e explicar estes leitos agora transformados em armazéns e em depósitos dos destroços e dos detritos de um mundo que se esqueceu de cuidar de sua única vivenda, a Mãe-Terra.
Encontro todos os restos inutilizados pela mão humana que agora degrada as águas, avolumam-se nos fundos e tornam estes leitos cada vez mais superficiais.
Sem as benfazejas raízes daquelas árvores frondosas a conter e a armazenar as águas que brotam e pingam das nuvens carregadas lá do alto, elas simplesmente vão escorregando em borbotões e cascatas pelos morros e colinas abaixo, alargando as margens que nem se sabe mais onde ficavam.
E, tristemente eu vejo que estas águas que descem dos morros e colinas carregam consigo toneladas e toneladas de dejetos que foram jogados e esparramados e disseminados sem o mínimo respeito pela Mãe-Terra. Dejetos que irão, a cada dia mais, se avolumar no fundo dos rios, dos córregos e dos riachos.
E, tristemente eu vejo a multidão de pobres seres humanos perderem seus lares, seus feitos, seus bens e suas esperanças.
E, tristemente eu vejo a luta de uma existência de muitos ser reduzida apenas à roupa que em seu corpo estava naquele momento em que a turbulência das águas chegou a seus pés e que a única coisa que restava fazer era salvar a sua vida e a dos seus.
E, mais triste ainda eu fico ao ver que as aldeias continuam a ser erguidas junto às margens de minhas águas.
Tenho saudade do tempo em que os Homens respeitavam este pedaço de chão que fica de ambos os lados dos meus líquidos caminhos. E como seria o mundo novamente se o meu mundo das águas fosse venerado, se os rios não mais servissem de armazém e depósito para os dejetos, detritos e expurgos da humanidade.
Mas a esperança também é minha amiga inseparável e eu tenho certeza que o meu grito não será em vão e que todo este imenso caos que se encontra em meu leito terá o seu fim. Que todo o lamaçal dos fundos e todo o lixo armazenado de lá possa ser retirado e que eu possa novamente derramar meu corpo fluido, meu corpo líquido em meu leito suave e macio de roliços seixos reluzentes. Que os lindos seres de escamas luzidias possam nadar novamente aos milhares ao meu redor.
Mas, mesmo com todo o desgosto de ver o que os Homens fizeram com as minhas cristalinas águas eu continuo a cuidar de todos aqueles que por elas passam, que nela vivem ou que dela vivem e dependem. Porquê é lá, naquelas paragens líquidas que eu vou e venho, subo e desço. Eu sou Iara, a deusa das águas, a mãe das águas, a rainha das águas, enviada e designada por Tupã para trazer o alento e o amor a este mundo submerso.