Além das esferas azuis…

Um desabafo escrito em 20 de novembro de 1976  para um amigo que mora bem além das esferas azuis…

 

 

Voou mil sóis e mil mundos.

 

 

E chegou naquele mundo.

 

 

Mundo sem pranto, sem trevas, sem sombras.

 

 

Sem pesos. Sem amarras.

 

 

Voou mil mundos. Atravessou mil sóis.

 

 

E foi nessa travessia de difíceis barreiras que atingiu o ilimitado, polindo arestas e atingindo o brilho transparente e indefinível… brilho que eu jamais conseguiria explicar.

 

 

Foi gerado na mesma carne em que nós todos fomos gerados.

 

 

Germinou com as mesmas limitações que nos limitaram.

 

 

Trouxera grossas correntes nos pés, como nós todos trouxemos.

 

 

E teve asas de chumbo, como todos nós ainda temos.

 

 

Mas trazia dentro de si uma força imensa que nós somente invejamos.

 

 

Seus ombros eram frágeis. Mas carregava o fardo. O mesmo fardo que nós, de ombros fortes deixávamos à margem da estrada.

 

 

Muitas vezes nós o vimos cruzar a linha do horizonte só, sozinho…

 

 

E muitas vezes ele voltou ao nosso canto triste. Nosso triste canto sem cantos, sem cantigas, sem encantos.

 

 

Carregando seu fardo. Sempre. Pés descalços na estrada de espinhos. Na estrada de pedras.

 

 

Encontrava ressonâncias, sim. Quantas vezes!

 

 

Muitos cantaram com ele a canção da coragem e com ele arrastaram as pesadas correntes… arrastaram as pesadas correntes até sentirem que partidos estavam seus elos…

 

 

E cada vez o seu cruzar na linha do horizonte o tornava mais iluminado pelo sol.

 

 

No início era apenas uma negra silhueta projetada contra a luz brilhante do grande astro amarelo.

 

 

E sua imagem mais resplandecia a cada adeus… até o dia em que o sol se tornou uma negra silhueta quando ele sumiu no infinito azul que morava mais além.

 

 

Não compreendemos o porquê da saudade que ficou. Cegos na incoerência de vidas largadas à margem da estrada, mais cegos tornamo-nos com a luz resplandecente que fluía de seu todo.

 

 

Sentimos que o amigo não retornaria. E culpamo-nos, mutuamente, pelo desespero que restou. Um desespero só.

 

 

Hoje enxergamos por outro prisma. E olhamos os séculos que ficaram atrás de nós, séculos impregnados de erros. E de inutilidade carregados.

 

 

Ele foi exemplo. E foi voz amiga. Nós o desprezamos e até o odiamos por sentir o magnetismo de seus olhos meigos semeando nas escarpas.

 

 

Nós o odiamos tantas vezes ao sentirmos a repreensão em seu sorriso amigo.

 

 

Quantas vezes retornou ao nosso convívio?

 

 

Através dos séculos engasgados na garganta sentimos, enfim, a vergonha. Somente agora.

 

 

Você esteve junto comigo tantas vezes. Devo ter olhado para você com escárnio dentro de vestes empoeiradas e rotas.

 

 

Ou devo ter olhado com horror ao ver a inutilidade de tentar apenas um leve esforço para o seu olhar enfrentar.

 

 

Nosso pequeno mundo girou tantas voltas. Voltou tantos giros. E nós dentro dele vivendo a vida apenas. Vivendo a vida-terra sem tentar o infinito. Vivendo a pequenez frustrada à espera do ouro. Vivendo o anonimato vivido à espera de um nome, à espera de um poder.

 

 

E a ignorância total de um mundo melhor induzindo-nos abstratamente para o nada.

 

 

 

Você, amigo meu de tantos séculos.

 

 

Eu tenho sentido sua presença amiga a embalar os meus sonhos. Raramente, no entanto. Você está numa esfera muito acima da minha mediocridade. Eu sei que é difícil e penosa a sua chegada até meu lado para afagar meus cabelos. E sei, tristemente, que cheguei tarde para esta compreensão.

 

 

A compreensão sobre um mundo infinitamente melhor.

 

 

Quantas vezes eu penso em uma moldagem mais severa para este espírito inquieto meu que não para de ciganear.

 

 

E vezes sem conta eu retorno aos mesmos erros onde já fui argamassa amargamente moldada.

 

 

Eu sei que não vim nua desta vez. Eu sei que não vim rastejante erva. E por que então aquele torvelinho imenso e insano que me acomodou num plano terra para não enxergar o céu?

 

 

Por quanto tempo eu vagueei no nada pensando estar soberanamente acima de tudo? E afastei-me de você.

 

 

Corri alucinadamente em busca de esferas douradas, de sonhos loucos de onde eu nada trouxe.

 

 

Eu me vi um dia na colorida foto de um carro vermelho, supersônico, arrebentando-me com ele em um poste à beira da estrada… vi meu sapato dourado lá fora atirado com seu salto muito alto, em plano dominante.

 

 

Lembro-me que aterrorizei a plateia de homens-chãos ao expressar-me que seria assim que eu gostaria de sair deste mundo…

 

 

Achei aquela morte tão fantasticamente linda… num instante de atordoamento total… Achei tão sem graça a estupefação e o escândalo dos amigos que haviam chegado mais crus e mais nus que eu para esta jornada…

 

 

Não sei qual o sentido da palavra tristeza no lar onde você mora. Mas deve ter sido isto o que você sentiu naquela hora.

 

 

Não meu amigo-irmão, eu jamais procuraria aquele final para esta minha terrena vida de agora… mas, naquela hora, achei lindo ir embora assim… o carro espatifando-se como uma taça de cristal cheia de borbulhante champanhe…

 

 

… o vestido longo, vermelho, purpúreo, cintilando a madrugada inteira. O meu cavalo de rodas vermelho voando também…

 

 

Rosto algum, no entanto, ali eu vi. Ali, naquele flagrante real. E nem meu rosto ali eu conseguira colocar.

 

 

Eu não vivia esta vida… claro que não! Mas com ela eu sonhava.

 

 

Sonhava carros voadores. Sonhava luzes. Sonhava cintilações de estrelas… e eu a estrela maior. Taças explodindo espumas, num cristal sonando todas as escalas, em que brilhavam todas as cores.

 

 

É que eu vivia uma vida rodeando dores, sufocando angústias. E no meu alucinado sonho destes espectros de dores e de angústias eu fugia.

 

 

E me vi tantas vezes embalada em cantigas de amor. E sonhei apenas o belo. O belo da matéria.

 

 

Fui envolta no alucinamento das piscinas azuis… verdes… nas mansões com veludo encobrindo pés… com janelas estendidas para um mundo multicor… com salões iluminados, cristais cantantes… orquestras inteiras em sinfonias de todos os matizes…

 

 

Eu via um mundo belo ao meu redor.

 

 

E dentro dos meus alucinados sonhos nele eu procurava me infiltrar.

 

 

Escrito em 20/11/1976