Leia crônica do fim de semana de Adair Dittrich
E as caminhadas continuam.
Falei que minhas fases de sedentarismo teriam tido seu início logo que comecei a cursar o Científico, em Joinville. Sedentarismo seria um modo de dizer já que aulas de Educação Física nós não tínhamos. Mas naquele tempo eu ainda percorria um longo trecho a pé. Morava em casa de uma grande amiga de nossa família, a casa de Emília Salti Siqueira Campos. Ficava na então projetada rua Blumenau, ao lado de um riacho, logo atrás da fábrica de vidros da Drogaria Catarinense. E eu estudava no Colégio Bom Jesus. Em todas as tardes eu fazia esta caminhada.
Mas, não era só à tarde. Recém egressa de um internato de freiras católicas, persistia em mim a fé, a crença, a obrigação de assistir à Missa em todos os dias. Deslocava-me, então, a cada manhã até a Catedral. E, depois da Missa, descia pela rua Abdon Batista até às margens do Cachoeira para os meus estudos de piano com a maestrina Dona Laura.
E, para estas mesmas margens, em três noites por semana, eu me dirigia a fim de participar dos jogos de basquete feminino em um Clube de Regatas lá sediado.
Quando eu terminei o curso de Medicina mudei-me para Santos, no litoral paulista, onde em sua Santa Casa de Misericórdia fiz minha residência médica.
Naquele tempo lá havia acomodações apenas para os meninos. A parte a nós, meninas, destinada, era apenas a grande sala com cadeiras, poltronas e uma mesa de pingue-pongue para o nosso horário de lazer após o almoço.
Eu morava em casa de uma colega e os pais dela sempre nos levavam e buscavam no carro deles. O único exercício era uma caminhada até à praia nos domingos sem chuva e o furar as ondas na mansidão do mar.
Já estava em atividade aqui em nossa terra quando a moda do Cooper chegou. Correr era necessário. Nas curtas férias de um congresso no Rio de Janeiro lá mesmo o meu correr começou. Pela praia. No calçadão da praia. E, munida com a indumentária adequada, tênis, camisetas e agasalhos variados, eu de lá retornei para casa.
E encontrei o local plano e adequado para as minhas corridas diárias. Saía de minha casa e seguia pela linha férrea no rumo de Três Barras. Quando o terreno permitia eu corria ao lado da ferrovia. Se por ali não fosse possível por seu leito mesmo, pulando os dormentes, eu seguia o meu caminho. Cruzava as pontes e seguia ao longo dos campos do Miranda de um lado e o ainda pantanal da Charqueada do outro. Às vezes mudava o sentido e então me dirigia na direção do Colégio Agrícola.
Sabia direitinho a distância percorrida. Ao lado da ferrovia há pequenos postes pretos a cada cem metros e outros mais altos marcando os quilômetros.
A sudorese abundante só começava a encharcar o meu corpo e a minha roupa quando, enfim, eu diminuía a velocidade após cruzar o portão de entrada de nossa casa.
Foi nesse tempo que comecei a frequentar a pequena, mas não menos importante academia que o Clube Scala instalou em uma das esquinas da praça Oswaldo de Oliveira, em prédio que pertencia à família Wendt e onde hoje está instalado o Incor Canoinhas.
Foram os exercícios ali praticados, aliados às minhas caminhadas ao longo dos trilhos da ferrovia que me permitiram tantas andanças pelo velho mundo em uma memorável viagem realizada há mais de trinta anos.
Foi algum tempo depois que nova fase de sedentarismo teve início. Apenas sedimentado ficou em algum canto da memória a necessidade premente do mover-se e do exercitar-se. Os dias eram curtos. O tempo corria. Eu, não!
O cérebro sabia que algo deveria ser feito. Porém, espaços vazios não eram encontrados. Mas, quando ele conseguiu dominar um pouco mais aquela inútil necessidade de repouso as pernas voltaram a se movimentar.
Ao tempo em que fazíamos o curso de especialização em Acupuntura Médica, aprofundamo-nos também no Qicum, um método chinês que alia à respiração, a meditação e os exercícios de alongamento.
Foi o que não me deixou ficar estendida apenas pelas poltronas da vida após os extenuantes dias de trabalho. E eu fazia o Qicum, sistematicamente, em todas as manhãs.
Já não morava mais à beira dos trilhos. Do alto da colina onde está situada a minha casa eu saía pelas manhãs dos sábados e dos domingos, quiçá, em algum feriado também, a caminhar pelas ruas da cidade. Contornava dezenas de vezes os canteiros da grande praça central, dava voltas pelos quarteirões da parte plana da cidade e retornava cansada, mas feliz.
Até o dia em que notei tornar-se muito árdua a subida da colina. Até o dia em que o tropeçar em pedras soltas e em buracos pelas calçadas fez com que o meu equilíbrio de indiferente passasse para instável, ocasionando quedas e consequentes lesões.
Então os períodos de inércia foram se alongando. O tombar ao chão após encontrar um pequeno obstáculo que poderia ser um desvão no assoalho ou apenas um tapete estava se tornando mais constante. Transformar a posição sentada em vertical era um problema. Os membros inferiores não tinham firmeza para o apoio. Todo impulso ascensional tornava-se cada vez mais difícil, quase nulo até. A ajuda dos membros superiores para se firmar em uma bancada fixa pouco adiantava porque eles também estavam lassos. Já havia até programando um apoio para os mesmos a ser colocado na lateral do vaso sanitário.
Até o dia em que uma luz brilhou mais forte em meu cérebro e ele me mandou procurar o meu amigo Marcelo Gallotti. Porque os joelhos e a articulação do quadril já tinham passado da fase de incômodo para a de dor.
Aparelho para se fazer o exame de Ressonância Eletromagnética só na distante Joinville. E de lá retornei com o inevitável laudo de hipotrofia dos músculos paravertebrais adicionado às previstas lesões de ligamentos e coisas afins.
Iniciar exercícios de musculação em academia foi a sugestão e o conselho do amigo especialista. O que começou a ser seguido muitas e muitas luas após. Todos os dias ao descer para o meu consultório levava junto uma sacola com o material necessário para seguir até uma academia. Mas… o cansaço do fim do dia trazia-me de volta para casa. E jogava-me sobre a minha poltrona predileta.
Até o dia em que uma queda maior fez com que eu do chão nem mais conseguisse me levantar sem ajuda de alguém. Há meses já eu deixara de lado as minhas funções de anestesista. Exatamente por sentir que não mais havia posição para fazer o que eu mais amava na face da terra que era exercer a minha especialidade médica.
E, num belo dia de sol esplendente, num final de janeiro, adentrei a Academia Espaço Livre em busca de algo melhor para minha vida. Até a escada frontal eu tive dificuldade, pela primeira vez, em subir.
Mas, a gentileza e paciência do Elias, o primeiro profissional de Educação Física que lá me atendia, fez, aos poucos, os meus músculos adquirirem forma. E força. Primeiro foi o sofrimento de uma tal de isometria. Depois de meses, a glória em começar nos diversos aparelhos. Dizer que nem uma perna sozinha, sem peso algum sobre ela, eu conseguia deixar elevada por mais de cinco segundos na cadeira flexora, parece algo, para mim, hoje, inimaginável. Mas era verdade. Um belo dia Elias acrescentou uma tornozeleira de meio quilo em cada lado. Peso que gradativamente foi se elevando.
Depois que Elias, o nosso cafezinho, como, carinhosamente o chamávamos, foi embora, foi a Lidiane Safanelli quem se incumbiu de fiscalizar os meus exercícios. E agora é a vez do Pedro Wipieski me aguentar.
E, para completar, ainda sigo o que o velho alemão Pilates introduziu, a fim abreviar o tempo de cura das lesões musculoesqueléticas, em soldados, no decorrer da primeira grande guerra mundial. Com minha amiga Louise Isphair Pires, uma hora por semana, eu passo em outro tipo de exercício que, para quem de longe olha, parece algo onde força não se faz.
E, enquanto eu faço o obrigatório aquecimento, dando as minhas pedaladas na bicicleta ergométrica, ou caminhando na esteira, o pensamento voa. É o tempo de aprofundar a respiração. É o tempo da meditação. É o tempo de ensimesmar-me, o tempo de lapidar arestas nos espaços escondidos da memória. É o tempo para exercitar-me no Qicum que jamais poderá ser esquecido.