No entorno da Praça Murillo e Tihuanaco
Nossa estadia na Bolívia, e mormente em La Paz, estendeu-se por mais de uma semana. Embora passássemos quase todo o tempo dentro das salas onde eram desenvolvidas as palestras, os temas livres, as mesas redondas, as reuniões e os seminários, algumas horas do dia sobravam ainda para que pudéssemos nos envolver com os costumes e lendas, com a cultura e as festas locais.

Foi assim que em uma das noites participamos, através das ruas e das praças, de um espetáculo folclórico de muita beleza e de uma musicalidade ímpar. Vestimentas que ostentavam as mais brilhantes cores. Adereços dourados. Tímbales, sinos, flautas de bambu de múltiplas chaves e outros instrumentos musicais davam o tom e o ritmo para um desfile inacreditável de pessoas dançando a dança mais tradicional das terras andinas. E foi assim que fui apresentada a “La Diablada”, a dança dos demônios, que, na minha imaginação tinha a finalidade de expulsar o feio e o ruim que poderiam estar atrapalhando a vida daquele povo.
Além da indumentária característica os bailarinos cobrem suas faces com a máscara do demônio. Consta que esta dança faz uma costura entre o cerimonial religioso das culturas dos aimarás e quéchuas com as que os espanhóis para lá levaram.
Os bolivianos, assim como nós, brasileiros, gostam muito do futebol. Ouvia-se, na distância, o rumor dos torcedores, todas as noites, dentro daquele que seria o estádio principal, incrustado dentro da grande depressão onde s situa La Paz.
Além disto, algo observamos por todas as esquinas. Acirradas disputas de futebol de mesa. Ou seja, de futebol de botão.
Vagar pela Praça Murillo era o nosso compromisso de todas as tardes depois que as sessões do congresso findavam. E lá íamos nós dar milho aos pombos. Variando na coloração entre cinza-azulado e branco, uma infinidade deles voejava em torno.
Nossos colegas bolivianos levaram-nos até um dos mirantes da cidade. O entardecer visto lá do alto era maravilhoso. Ver o sol a se despedir no horizonte, espalhando seu brilho pela imensidão nevada do Illimani. Espetáculo de cores sem fim.
Não se poderia ver tudo o que há em La Paz naquelas poucas horas que tínhamos antes do escurecer. Mas, homeopaticamente, aproveitando um pouco a cada dia, pudemos apreciar o que, penso eu, seria o principal.

Fiz a imprescindível visita ao Mercado das Bruxas onde se pode adquirir uma variada infinidade de objetos pertinentes ao seu nome, objetos até então desconhecidos para mim. E os vendedores davam explicações detalhadas sobre a finalidade de cada um. Foi ali que eu soube para que serviam os fetos mumificados de lhama. Devem ser colocados junto à pedra fundamental de qualquer tipo de construção que se faça. E muitos outros artefatos mais lá se encontram para se fazer oferendas à deusa andina Pachamama. Cada povo tem a sua bruxa de estimação.
O casario antigo de várias ruas do centro histórico da cidade chama a atenção pela diversificação de seu estilo de construção. Uma cor diferente a cada passo.

Entre tantas, da época colonial, chama a atenção a Catedral Metropolitana de Nossa Senhora de La Paz. Imagine-se uma igreja com cinco naves onde a arquitetura neoclássica se mescla com muito do barroco. E o altar principal é todo em mármore trazido da Itália.
Houve uma tarde especial para visitarmos o Palácio Quemado, que é a sede do governo e também o Palácio do Congresso, ambos locais de passagens históricas e trágicas da vida política boliviana. Tudo em torno da que se chamava Plaza Mayor e teve seu nome mudado para Plaza Murillo em homenagem a um dos heróis da independência daquele país.

Não poderíamos sair da Bolívia sem que visitássemos o sítio arqueológico mais famoso das montanhas andinas, o sítio de Tiahuanaco. Foi mais uma tarde de mergulho nas eras pré colombianas.
Não sei dizer o que de mais grandioso lá existe. Não sei dizer o que mais causou profundas impressões em mim. Saber que nada existe escrito, de alguma forma, em papiros, em papéis, em folhas ou gravado em pedra, sobre a sua história, parece-me algo inimaginável. Comunicar-se-iam eles de que forma? Como enviariam mensagens para longas distâncias? Tudo apenas inscrito em seus neurônios cerebrais?
Tudo isto e muito mais a se remoer dentro de minha cabeça quando nos deparamos com aquelas construções megalíticas. Pedras com peso superior a cem toneladas onde se veem imagens esculpidas. Como foram cortadas, como foram entalhadas, como conseguiram encaixá-las, com precisão milimétrica?
Chama, sobremaneira, a atenção o imenso Kalasasawa, o “Templo das Pedras Interrompidas”. Lá está, nitidamente marcado, um calendário com os 365 dias do ano. E o mais incrível é a localização exata dos dias dos equinócios de primavera e de outono e os dos solstícios de inverno e verão. E não deixaram livros, nem papiros e nem pedras com algo grafado? Comunicavam-se por telepatia? Não havia necessidade da escrita?

Entre tantas edificações mais, destaca-se também a colossal pirâmide de Akapana que cobre uma área de quase trinta mil metros quadrados.
Inúmeros cactos cobrem toda aquela região. Mas havia um, em especial, que a nossa guia fez questão de nos mostrar. E de algo místico, sobre ele nos contou. Muito alto. Com uma flor sui generis. Muito branca. Linda. Que era aquele o ano da sorte, porque florescera. Pois, a florada só ocorre naquele cacto, especificamente, dizia ela, a cada dez anos.
Tivemos uma noite espacial na residência do Professor Carlos Castaños, presidente da Sociedade Boliviana de Anestesiologia e do Congresso. Uma requintada ceia. Sua esposa, Edith, que eu já conhecia quando, aqui no Brasil, estiveram participando de nossos congressos, foi de uma gentileza ímpar. Muitas mesinhas espalhadas no terraço da residência. Fiquei em uma delas com mais duas anestesistas, uma da Guatemala e outra venezuelana e mais outra senhora argentina, esposa de um colega.
A conversa estendeu-se, não só a assuntos de nossa especialidade, mas, sobre nossos países como um todo. Desde a entrada até a sobremesa garçonetes iam servindo aperitivos e o vinho específico que acompanhava cada prato. Então, o papo estava a cada passo mais animado. Eu, a pensar que estava colocando meu espanhol em dia. Até que uma das interlocutoras diz mostrar-se pasma porque não tinha ideia de que a língua portuguesa fosse tão semelhante à espanhola. Porque se podia entender quase tudo o que eu estava falando…. Pois é! E eu, na certeza de que dialogava na mais pura língua de Cervantes! Sotaque é sotaque e não se perde jamais…