Adair Dittrich escreve sobre a capacidade de sonhar
O mesmo sonho, amiúde, se repete e vem tumultuar sua vida. Um sonho que reascende em sua memória fagulhas apagadas de um amor que se perdeu nas quebradas do tempo.
O mesmo sonho, amiúde, se repete e a faz retroceder aos tempos de seu ingênuo adolescer. Ela jamais o vê concretamente, no seu todo. Jamais o vê como ele era. Apenas diáfanas imagens. Há um rio em seu sonho. Sempre há um rio. Envolto em névoas, na outra margem, ele se encontra. Após a travessia, difícil travessia, tumultuada travessia entre pedras e turbulentas águas ela alcança a outra margem.
Mas, em meio ao nevoeiro, entre as árvores ao longe, a imagem dele se desvanece e some. E com ele o sonho. E o sono. Sobressaltada acorda em seu solitário leito. A sós fica a cismar. A sós tenta mergulhar uma vez mais em seu sonho. E no despertar resta apenas a lembrança do que fora o seu sonho.
Lembranças de um sonho da noite de agora trazendo lembranças dos sonhos de outrora, dos tempos de seu adolescer há tanto já mergulhado no fundo da memória. Mas ela sabe que outras noites virão. E as noites serão belas porque o seu amor voltará a passear pelo seu sono.
Porque o mesmo sonho com ele se repetirá. Já o vira, sorrateiramente, infiltrando-se por entre as paredes da velha casa que desde a infância conhecera. Por entre as fendas sumira quando ela, inopinadamente, porta adentro irrompe. Lá encontra, apenas, a velha mãe com seu crochê de fios coloridos nas mãos.
Em prantos tenta explicar-lhe as razões que a levaram ao brusco rompimento de seu grande amor naquele passado distante. Mas não consegue. Apenas pede que ela seja a mensageira de um pedido de perdão. Do perdão que dele há tanto aguarda. Perdão por ter rompido aquele amor tão lindo. A velha senhora, em silêncio, permanece e, no silêncio, entrega-lhe um pedaço de pão. Que em suas mãos se esfarela, dilui-se e evapora junto com o seu retorno do mundo dos sonhos.
E Maria passa agora os seus dias a relembrar a sua história de amor. Do amor impossível que no passado deixara. Era jovem, ingênua, sonhadora e pobre. Já em criança fora entregue para uma família que dela cuidara. Dela e demais outra menina que de outras plagas viera. Foi tratada com desvelo e dedicação. Estudou. Muito aprendeu. Só não aprendeu como se defender das maldades e intrigas do mundo.
Aprendera que o importante era obedecer sem perguntar. Aprendera que no obedecer estaria o agradecimento pela vida que tivera longe do lar onde nascera.
E então conheceu o seu amor. Fica a lembrar-se da primeira vez que o vira, ainda nos bancos escolares. Depois a envergonhada troca de frutas nos primeiros piqueniques. Das risadas e das palavras trocadas durante tantos anos. Do dia do seu noivado. Não tinha um traje adequado para a comemoração. Pois, se a família dela era pobre, pobre também era a família que a abrigara.
E ele a queria bela, ele a queria deslumbrante. Para com ele conhecer o mundo. Para conhecer seus amigos. Para com ela passear. Então levava-lhe os mais belos vestidos, os mais finos trajes. Também a presenteara com todo o enxoval que iria com ela para a casa que seria deles.
Aconteceu então que os mas dos empecilhos que turvam a existência de tantos começaram a surgir. O primeiro foi a proibição de Maria casar-se antes da outra Maria que na casa morava. O segundo chegou com a exigência de que o noivo de Maria deveria ser o noivo da Maria mais velha. E o último veio com a exigência do rompimento do noivado. E Maria obedeceu. Porque aprendera que o obedecer seria a forma de agradecer o que dado lhe fora. Devolveu a aliança ao seu amado. Sem nada dizer. Sem coragem de algo explicar.
O inexplicável ocorreu tão subitamente que o estupefato e aturdido jovem, sem nem saber o que dizia ou o que fazia, exigiu que Maria lhe devolvesse tudo o que ele lhe havia dado. Junto com a dourada aliança ela lhe entregou um repleto baú. Onde o seu coração despedaçado se encontrava também.
Mas, havia ainda mais um mas a coroar-lhe a vida. Deveria deixar a casa onde desde criança vivera. Deveria retornar para junto dos seus. Deveria retornar para junto da mãe que a gerara.
Porque em casa deles moça que já fora noiva não poderia permanecer. Porque moça que já fora noiva jamais encontraria alguém para casar. Porque moça que já fora noiva tinha um estigma na testa. Um estigma na alma.
Um dia Maria encontrou outro alguém. Casou. Teve muitos filhos. Pelos quais a vida viveu. Não casou por amor. Apenas casou. E suportou as agruras de uma vida a dois que mais calvário que vida foi.
Trabalhou em mais de um emprego para levar o pão e o abrigo a seus filhos. Multiplicou-se em várias Marias para suportar a companhia de um homem que apenas pai de seus filhos fora. E com ele permaneceu, não ligada pelas solenes promessas feitas no dia de seu casamento, mas para que jamais alguém dissesse que seus filhos não tinham um pai.
Após uma vida vivida entre trabalhos e angústias, entre tristes e dolorosos pedaços amenizados pelo amor aos filhos e pelo amor dos filhos, Maria vive embalada pelos mesmos sonhos que sempre se repetem. Os sonhos que reabriram, ainda que envolto na neblina, ainda que na distância, o seu antigo, imenso e inesquecível amor.