ARTIGO: O realismo de Golbery

Os 50 anos do Golpe Militar suscitam variáveis interpretativas, além de reações passionais e antigas dores às quais cabe o devido respeito. Reservados os sentimentos, tentarei explicar o fato histórico a partir de uma justificativa teórica, cuidadosamente formulada pelo artífice intelectual do Regime, General Golbery do Couto e Silva. No contexto da Guerra Fria, assumiu a responsabilidade de justificar o paradoxo tupiniquim de uma intervenção autoritária em defesa da democracia. Em nome da segurança, a liberdade foi postergada e os fins justificaram os meios.

A “Revolução de 64”, foi um golpe de Estado. Revoluções em geral o são. A despeito das intenções e efeitos, assim o foi, pelo rompimento com as regras democráticas. Mas não foi o simples golpe de uma camarilha militar. Foi o resultado de um movimento que começa em 1937. É quando alguns jovens militares, formados na Escola Superior de Guerra – ESG, desaprovam o fechamento do Congresso, pelo governo de Getúlio. Estranho paradoxo, considerando que esses jovens, críticos do totalitarismo e defensores da liberal-democracia, seriam os mentores e operadores do Golpe de 64. É, mas os fins justificam os meios.

Entre os personagens, despontavam figuras como Geisel, Castelo Branco e Golbery – que serviu no 13º Batalhão de Caçadores de Joinvile. Todos passaram pela ESG e comporiam o que podemos chamar de uma “elite emergente” com um projeto de poder. E aqui começa nosso entendimento sobre a complexidade do fato, enredado numa leitura sociológica, apoiada na filosofia da história e da política, acerca dos destinos do País.

A ideia era a de que um país com a formação antropológica brasileira, oligárquica, latifundiária e destituída de senso comunitário, só chegaria à modernidade e à democracia pela via autoritária. E isso seria possível pela conduta de uma elite emergente, ciente de sua missão histórica. Por trás do argumento, uma visão histórica do Brasil e dos processos civilizatórios.

Ali está, por extensão, a primeira formulação teórica da sociologia, qual seja, a do positivismo de Augusto Comte. Ordem e progresso, lema do nosso símbolo maior, é a expressão do positivismo, adaptado à realidade nacional pelos formuladores da sociologia brasileira, Alberto Torres e Oliveira Viana, mentores intelectuais dos melhores alunos da ESG. Só o Estado centralizado, governado por uma elite capaz de evitar a decadência, poderia conduzir o País rumo ao destino manifesto: potência e liderança geopolítica na América do Sul.

Essa é a chave interpretativa do pensamento de Golbery. Membro dessa “elite emergente”, anti-comunista intransigente, Ele propõe uma aliança estratégica com os Estados Unidos. Em seus livros Planejamento Estratégico e Geopolítica do Brasil, sugere que os EUA teriam boas razões em apoiar o Brasil na assunção dessa liderança continental, em defesa dos interesses da civilização ocidental, cristã e democrática, contra o comunismo ateu e totalitário. Nessa perspectiva geopolítica, impossível não reconhecer a grandeza dos interesses.

No contexto da Guerra Fria, e na batalha cristã entre o bem e o mal, cabia não apenas identificar o inimigo externo. O comunismo era uma real ameaça interna, e cabia eliminá-la a todo custo. Isso não se faria democraticamente, ante a fragilidade de um povo ignorante, presa fácil da demagogia inimiga. Diante da “anomia social” (olha o positivismo aí), era necessária uma solução autoritária, em que a liberdade, provisoriamente, daria lugar à segurança. Uma vez livres da ameaça comunista, estaríamos aptos a construir o caminho da democracia. Na perspectiva da filosofia política, Machiavel e Hobbes esfregam as mãos.

Ficam no plano da filosofia da história ao menos duas claras orientações: primeiramente, a crença numa elite emergente, anunciando a redenção e o restabelecimento da ordem e o progresso, ante a ameaça da decadência civilizatória (Toynbee e Spengler). Em segundo lugar, aparece a interessante perspectiva, novamente, de Oliveira Viana: a história política do Brasil seria marcada por uma sucessão de sístoles e diástoles. E na década de sessenta, era o momento de concentrar, até que as condições estivessem seguras ao processo de abertura. Dito e feito.

De quebra, coube a Golbery o refinamento de defender um regime restritivo, porém, com legislativo bi-partidário. “A crítica é o sal da vida” e um regime autoritário, por mais esclarecido, não seria criativo sem oposição. ARENA e MDB atuariam nesse novo cenário, tais quais republicanos e democratas nos EUA. Além disso, a ideia de uma elite dirigente e tecnocrática é a antítese do populismo e do caudilhismo latino-americano, que Golbery e os seus consideravam a pior herança cultural getulista. O poder, portanto, deveria ser assumido por uma junta, despersonalizando o seu exercício.

A despeito de julgamentos e interpretações, é imprescindível compreender os fatos históricos a partir das ideias que os permeiam. E o mosaico ideológico do “bruxo da ditadura” é tão importante para compreender as razões do Golpe, quanto as idéias de Machiavel e Hobbes são para as razões de Estado.

Não teremos outro golpe, nem patriotas ao estilo de Golbery e dos militares no poder. Mas continuaremos pensando o Brasil. Do contrário, não seremos a potência que Ele e os militares obsessivamente almejaram. Sugeria certo filosofo alemão, que uma nação só se faz quando vai ao próprio fígado. Significa pensar suas próprias ideias e enfrentá-las. As grandes nações tiveram seus golpes e revoluções, e nunca deixam de pensar a si próprias. Punhal no fígado dá mal estar, mas é a história, e o fígado regenera.

Walter Marcos Knaesel Birkner

Sociólogo, professor da UnC, autor do livro

O realismo de Golbery, Editora da Univali, 2002.