Leia a segunda parte da crônica especial de fim de ano de Adair Dittrich
E então Alícia começa a narrar a sua grande aventura pela noite gelada, pela noite chuvosa, pela estrada coberta de lama vermelha.
Como meu mano havia viajado, minha cunhada recolhera-se a seu quarto ainda na hora do crepúsculo. Por problemas de saúde ela não poderia dormir sozinha; então a empregada no quarto com ela ficara.
Não me demorei por muito tempo aquela noite em casa de meu mano conversando com Alícia, já que a dona da casa já tinha ido dormir. E quando eu saí ela também logo se recolhera a seu quarto. Estava com o rádio ligado e lendo sob a fraca luz de um lampião quando ouve chamarem por seu nome. Quando ouve insistentes batidas na fina e simples parede de madeira. Por estar ouvindo rádio, seu inseparável companheiro radinho de pilha, sabia que pouco tempo se passara das oito horas da noite. Atendeu, às pressas, a quem por seu nome clamava.
Era um senhor que morava lá perto das barrancas do rio. Vinha a pedido de um vizinho para buscá-la pois a mulher dele, grávida, estava quase se passando. Há muitas horas já em trabalho de parto e a parteira que a atendia falou que a criança estava atravessada.
– Só com médico, dona, foi o que me mandaram dizer.
Chovera o dia inteiro. Não uma tempestade. Não uma chuva torrencial. Mas era uma chuvinha fina, fria e contínua. Chuvinha de inverno que a todas as ruas e estradas empapava com aquela lama vermelha, com aquela lama escorregadia.
Rapidamente Alícia trocou seu quentinho pijama de pelúcia por uma saia, uma blusa e uma meia-calça de lã. Por cima de tudo a forrada capa impermeável. Cobriu a cabeça com um grosso gorro de lã também. Um confortante gorro de lã, azul e branco, de crochê, com o qual, no último natal sua irmã a presenteara. Calçou um calçado fechado, quase botina. Calçou suas luvas que de lã eram também.
Foi até o seu consultório, numa sala ao lado da casa onde morava. Foi até o seu consultório para pegar sua maleta. Não uma maleta comum de médico de cidade grande. Era uma enorme sacola de lona onde já deixava todo o seu material de urgência acomodado.
Fez uma revisão. Viu que tudo o de que julgasse que poderia precisar lá estava, enquanto cismava com seus botões que lá nada poderia fazer.
“Feto transverso… deveriam já ter trazido a mulher para o hospital onde logo seria submetida a uma cesariana de emergência. Não há outra solução.”
Falando apenas para ela mesma o seu eu cantava alto:
“Só com médico, dona… Não, lá nas barrancas do rio, só com milagre.”
Mas, iria, sim. Sempre fora. Jamais negara um pedido de socorro. Nem que fosse para levar apenas um consolo.
Alícia fez o inventário de sua sacola. Soro Glicosado e Fisiológico e equipos para transfundi-los. Esfigmomanômetro, estetoscópio, termômetros, estetoscópio de Pinard para ouvir os batimentos fetais.
Frascos e equipos para coleta de sangue, equipos para transfundir o sangue. Soros Anti-A, Anti-B e Anti-Rh para classificar o sangue da gestante e de possíveis doadores. Lâminas e lamínulas de vidro. Para fazer a tipagem sanguínea e do fator Rh. Para realizar as provas diretas e cruzadas do sangue da paciente e dos doadores.
Oxitócicos para uso intravenoso e intramuscular, ampolas de cálcio e de cloreto de potássio, antibióticos. Seringas e agulhas para injeção de vários calibres e tamanhos. Estojo com tesouras, bisturis, porta-agulhas e agulhas e fios de sutura, pinças variadas, espéculos… luvas esterilizadas, antissépticos, desinfetantes, enfim, uma parafernália para enfrentar o que desse e viesse. Ah! Sim! e testou a grande lanterna a pilha. Que funcionava com oito pilhas grandes.
Tirou do armário o seu longo avental branco, impecavelmente engomado e passado a ferro; de brasa. Dobrou-o com todo o cuidado e o colocou por cima de tudo.
Quilômetros e quilômetros, com o jipe a desviar-se de atoleiros, barrancos e buracos, foram passando. E a noite a cada vez mais fria. E a interminável chuva miúda a cada vez mais gélida.
O quadro que, ao entrar na casa Alícia percebeu a um simples olhar, era assustador. A paciente com olhos encovados e a face pálida. Com a respiração opressa. Com sudorese fria e abundante. Com gemência fraca. Com lençóis mostrando a tragédia… o sangue que, misturado ao líquido amniótico de seu corpo extravasara.
Antes mesmo até de verificar a pressão arterial, Alícia puncionou uma veia e deixou escorrer com a maior rapidez possível o sangue branco que trouxera, o velho amigo de todas as horas, o imprescindível soro fisiológico.
Examinando a paciente notou, aliviada, que não era a criança que estava atravessada, não era um feto em posição transversa. A posição era cefálica, sim. A cabecinha, no entanto, ficara em posição fora do prumo. A parteira deveria ter falado o correto. Mas foi mal interpretada.
E havia ainda a hemorragia a complicar. E as contrações uterinas que se faziam curtas. As contrações uterinas que se repetiam a intervalos longos. As contrações uterinas com intervalos e durações irregulares. E os batimentos do coraçãozinho fetal estavam rápidos. Muito rápidos. Acelerados muito além do máximo normal permitido. Enfim, a famigerada taquicardia que chega antes de começar a bater devagar. Antes da temível bradicardia.
Outra veia, noutro braço onde Alícia colocou o oxitócico num frasco de soro glicosado, para que, diluído corresse também. Colheu o sangue da paciente. Fez a tipagem sanguínea e do fator Rh, rezando para que não fosse negativo. Graças à sua potente lanterna conseguiu realizar o exame. Tipo “O” Rh Positivo.
Agora era a vez de examinar o dos circunstantes. Passíveis e possíveis doadores. O do marido não era compatível. De uma cunhada que lá estava era, mas ela havia tido um aborto recentemente. Trouxeram um peão que morava num rancho anexo. Compatível. Estava, aparentemente, bem de saúde. Foi dele que Alícia colheu, no primeiro frasco, o precioso líquido vermelho.
E, após realizar todas as provas possíveis naquele tempo e naquelas condições, uma nova veia foi puncionada e o sangue foi, na maior velocidade que o calibre da agulha permitia, escorrendo para dentro das veias da gestante, para dentro do corpo da gestante, para dentro do corpinho daquele minúsculo ser que em seu ventre ainda vivia.
(Continua)