Aventuras de uma médica de interior (IV)

Leia a última parte da crônica especial de Adair Dittrich                                                                        

 

Alícia continuava sua caminhada afundando os pés na lama da estrada. Continuava sua caminhada pelo breu da noite molhada. Preocupada que a luz de sua lanterna conseguisse iluminar seus passos…

Pelo muito tempo que acesa havia permanecido enquanto fazia o atendimento de dona Eulália lá naquele rancho perdido nas barrancas do rio, muita energia das pilhas havia sido consumida. Então Alícia acendia por um tempo para clarear o caminho a seguir, definia-o em sua mente, apagava-a e seguia em frente.

Mas a estrada era traiçoeira. Buracos cobertos de lama eram armadilhas. E em vários deles Alícia afundava. Com esforço, escorregando, de gatinhas, apalpando o visguento barro a seu redor deles ia saindo. Até que afundou em um maior. Onde seu calçado preso ficou em pontiagudas pedras. Pontiagudas pedras que as pernas lhe laceraram também.

Abandonou o calçado. Abandonou a meia-calça que só fazia piorar os resvalos e os deslizes pela lama vermelha. Cravando os dedos dos pés em meio àquele vermelho mar visguento ela conseguia percorrer mais alguns metros. Às vezes perdia o bordão. Outras vezes a lanterna descambava pelas valetas.

Imaginara encontrar alguma luzinha acesa em algum dos sítios avizinhados da estrada. Onde, talvez, alguém com um jipe a levasse para casa. Mas nada. Era madrugada. E o mundo dormia. Sem lampiões acesos que, em vão, consumiriam o precioso querosene.

Quando chegou num cruzamento de estradas optou pela que estava em melhores condições, a que era mais larga e que tinha em sua superfície uma camada de pedra britada.

Foi mais um engano na noite dos absurdos. Era um caminho que levava à porteira de uma fazenda, cuja sede distava dali muitos mais quilômetros que a distância que ela julgava faltar para chegar em casa.

E retornou à via principal.

Após ter chegado ao acme de uma grande subida, chegara também ao acme de suas forças. E deitou-se, ali mesmo, em um relvado que percebera à margem. Mas o relvado encharcado de água também estava. Era um colchão de água em que Alícia se deitara. E a água, a gelada água, a enlameada água, a vermelha água sob sua capa entrou e a encharcou inteira. Mesmo assim ali se deixou ficar por um longo tempo… um longo tempo que lhe pareceu infinito… por um longo tempo até perceber que sua respiração melhorara… que suas pernas, talvez, conseguissem, com mais algum esforço, continuar a caminhada.

Saíra das barrancas do rio quando passados eram alguns minutos da meia-noite. E percebera que conseguira chegar à cidade quando, talvez, as primeiras fímbrias da claridade da manhã começassem a dar lugar ao negrume da madrugada daqueles primeiros dias de inverno do sul.

Ela não soube contar como entrou na casa silenciosa e escura, na casa gélida e sem sons. Não se lembrava se havia procurado água. Lembrava-se apenas que primeiro queria cair na cama e descansar. Depois… depois o resto…

E assim como chegou, com as vestes encharcadas de lama vermelha, de pegajosa lama vermelha, com o corpo cheio de escoriações, com os pés edemaciados e sangrantes, com o coração em disparada, com a respiração ofegante ela só queria deitar-se e descansar. Depois… depois o resto….

Viajou no delírio de uma dor na base do pulmão direito, no calor que tomava conta de seu corpo, na angústia de um nunca chegar a destino incerto em sua mente enleada em nuvens.

Viajou no delírio de uma febre que a gelava inteira, no corpo e na mente… viajou por infinitos azuis com uma brasa em sua garganta.

Viajou por esplendorosos campos vermelhos obstruindo sua respiração, trancando poros, inundando de lama viscosa todo o caminho que o ar deveria seguir para melhorar o caminho do sangue que era vermelho, o sangue que gelava dentro das artérias, o sangue que ficava azul e se solidificava dentro das veias.

Viajou com a mão de sua Nonna que lhe afagava o rosto, que lhe enxugava o suor… viajou com imagens de deuses a lhe acenarem nos longes.

Até que em seu delírio sentiu que algo enrolavam em seu corpo molhado de lama viscosa vermelha, molhado das águas que de seu corpo escorriam.

Depois sentiu estar sendo espetada por agulhas de tricô… ah! Que bom, pensava ela, estão consertando minha roupa rompida nas pedras da estrada vermelha.

Até que as cortinas da mente se abriram e aos poucos Alícia retornava da escuridão para onde fora sugada em sua longa jornada na noite gelada da estrada.

O que dizer a ela agora? Que jamais deveria se jogar numa aventura pela noite na estrada dentro de um jipe com um desconhecido que a que antros de terra poderia tê-la levado? Que jamais deveria sequer imaginar que conseguiria retornar em chuvosa noite escura intacta e segura?

Alícia disse-nos que nada pensou. Que estava certa sobre o destino a que estava sendo levada até as barrancas do rio. Mas que não pensara no diferente terreno a palmilhar. Porque na terra dela, na terra de onde vinha diferente era o solo. E, no cansaço da noite ela não titubeara em se lançar sozinha, a pé, pela longa estrada.

A pneumonia que a deixaria em repouso por muitos dias nem chegou a se instalar completamente. E logo ela retornou à casa de meu mano, ao seu consultório, aos atendimentos de pacientes que pareciam não ter fim.

E o meu desespero, o desespero que passei durante todas aquelas horas em que a vi inerte, desfalecida, em que jurei a mim mesmo que no dia seguinte a levaria embora dali foi se desvanecendo na distância das horas.

A minha rotina continuava sempre igual. Dizia para mim mesmo que logo eu venderia tudo o que aqui eu tinha. Não é que eu não encontrasse compradores. Eu não os procurava. Para mais ninguém a não ser para o meu titubeante eu e para Alícia eu dizia que daqui eu queria sair.

Até o dia em que ela se cansou. De me esperar. De mim. E se foi.

E aqui fui eu ficando, João. Sozinho. Ela foi embora, sim. Ela foi. Cansou-se de esperar pela minha mudança. Mudança de vida, mudança de hábitos, mudança para novos horizontes. Ela foi. Para longe do barro vermelho. Para longe de mim.

   Fim.

 

Rolar para cima