Leia crônica sobre as primeiras aventuras de Adair Dittrich como universitária
Passada a euforia de nosso ingresso na Faculdade de Medicina e, passada a curiosidade de adentrarmos nos desconhecidos meandros de um ilimitado mundo de conhecimentos, fomos nos agregando em diversos grupos.
Éramos cento e vinte e duas criaturas oriundas de mundos diferentes, de diferentes culturas, de diferentes partes de nosso imenso país.
Como sempre, existem aqueles que tomam as rédeas nas mãos e vão conduzindo a carruagem. E, nas muitas conversas entrelaçadas nos intervalos das aulas fomos idealizando uma associação recheada dos mais altos ideais e ideias, com os mais refinados e variados objetivos a que demos o nome de Centro Paranaense de Intercâmbio Universitário, o nosso famoso CPIU. Palestras e cursos científicos, trabalhos, teatros, viagens de estudos e de puro turismo também, enfim tudo o que jovens que achavam ter já saído da adolescência sonhavam… Tínhamos uma flâmula, em forma de triângulo isósceles com nosso emblema. Uma agremiação que não tivesse uma flâmula não estaria inserida na moda do momento. Além da flâmula, estatuto e regimentos, claro. E um Certificado com o nome de cada associado. Empiricamente toda a turma de calouros de medicina fazia parte deste Centro.
Naquelas primeiras semanas em que tudo era alegria e festa nós nos reuníamos na sede do Diretório Acadêmico “Nilo Cairo”, o nosso DANC, o centro sócio-científico-esportivo-cultural dos acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná.
Nossa pequena organização, orientada pelos veteranos, já começava os trabalhos para organizar o tradicional Desfile do Trote dos Calouros.
O primeiro trote, o batismo inicial a nós impingido pelos veteranos já ocorrera nas escadarias do vetusto prédio da Praça Santos Andrade no instante em que com o maior ufanismo dávamos o grito “Passei”, após conferirmos nosso nome na lista dos aprovados no vestibular. Lá mesmo rostos eram pintados com batom vermelho, cabelos dos meninos eram cortados de qualquer forma, cabelos das meninas polvilhados com muito talco da pior qualidade. Era o tal do talco usado para polvilhar as luvas usadas no anfiteatro de anatomia.
Mas o grande desfile do trote dos calouros envolvia todos os calouros de todos os cursos da Universidade. Calouros dos cursos de Agronomia, Farmácia, Direito, Engenharia, Filosofia, Ciências e Letras, Odontologia e Medicina. Sempre ocorria em uma tarde de sábado. Em plena rua XV de Novembro, no centro de Curitiba.
Não sei onde e nem como conseguíamos caminhões que se transformavam em palco para que em cima de seus tablados desfilássemos nossos inusitados trajes.
Não sei onde e nem como conseguíamos tecidos, vestimentas, bolsas, luvas, calçados, adereços e material de maquiagem para transformar aquele universo todo de estudantes em personagens caricatos do mundo de então.
Entre críticas e elogios aos acontecimentos e aos costumes, à sociedade em geral, aos políticos, entusiasmados desfilamos por aquela famosa rua, culminando com a apoteose na Avenida João Pessoa e Praça Osório.
Das Casas Pernambucanas, imensa loja que ficava em uma das esquinas da Praça Tiradentes, conseguimos muitos metros de tecidos para confeccionarmos imensos vestidos imitando a moda da época.
Naqueles dias Jacques Fath era o máximo nome da alta costura francesa e mundial. E havia uma indústria de tecidos que patrocinava muitos desfiles de moda. Claro que com tecidos de sua fabricação. Era do que mais se falava nas triviais e badaladas colunas sociais. Eram os Desfiles Bangu. Dos quais não participavam apenas modelos e misses, mas também as socialites da época.
Os desfiles das Misses e os desfiles de moda eram realizados, em sua maioria, nos salões do Quitandinha Palace Hotel, em Petrópolis. E Assis Chateaubriand era o imperador dos veículos de comunicações, com sua imensa cadeia de jornais diários e emissoras de rádio.
Então o nosso carro, que não era alegórico levava em seu bojo dez calouras de medicina trajadas com abomináveis imitações da alta moda! E um colega, conhecido pelo apelido de Pintinho Cachaceiro, santista de boa safra, lá estava com uma fita métrica nos ombros e um lápis e um caderninho nas mãos e do alto de seu bom humor e sua simpatia fazia o papel do Costureiro-Mor da época.
O imperdoável para alguns setores da imprensa e o não só perdoável como até aplaudido por outros, foi a faixa colocada no alto de nosso caminhão:
“Jaques Faz seus Desfiles Bang Bang no Chateau Brillant em Quinta Andinha.”
A famosa frase “Calouro é burro”, nós não cansávamos de ouvir. E a resposta era sempre um sorriso. No próximo ano seria a nossa vez de tripudiar em cima dos novatos. Mas ela estava embutida em tudo o que se dissesse sobre uma confraternização para os calouros.
Um veterano muito insinuante, ator já dos teatros curitibanos, humorista e “bon vivant” idealizou uma peça teatral com o nome “Volta, Calouro”, que, em alguns folhetos de divulgação e mesmo nos ingressos vendidos constava como “A Volta do Calouro”.
Claro que todo mundo adquiriu os ingressos. A peça estaria sendo montada no Auditório do Colégio Estadual do Paraná, naquele tempo a única sala onde uma peça de teatro ou um concerto poderiam ser apresentados.
E lá fomos nós, na memorável noite, deslocando-nos, a pé, até as dependências do Colégio Estadual, que fica além do Passeio Público.
Morávamos no Pensionato São José situado lá no alto da rua Emiliano Perneta onde ela faz esquina com o Largo Alfredo Parodi, um apêndice da Praça Rui Barbosa.
Éramos dez calouras só de Medicina, morando lá e mais outras de outros cursos. As freiras fechavam as portas impreterivelmente às 18 horas nos dias comuns e às 19 horas aos domingos. Mas, numa condescendência especial a Madre Superiora permitiu que retornássemos após o término do teatro. E lá fomos nós naquele plac-plac dos saltos de nossos sapatos pelas irregulares calçadas de Curitiba.
A sessão teria início às 19 horas. Mas bem cedo e ansiosas estávamos a caminho. Já escurecia quando chegamos às escadarias do Colégio Estadual. Não só nós, mas, uma multidão acorria em direção às portas de entrada para pegar o melhor lugar.
Estacamos, de súbito, antes as portas cerradas. Ante a escuridão total. Nenhuma luz naquela noite de sábado a iluminar canto algum do enorme educandário.
Pendurada à porta uma enorme e branca cartolina onde em negras garatujas lemos a inesquecível frase:
“Volta, Calouro!
Isto é Trote.”
Comprovado. Calouro é burro mesmo. E ainda pagamos para ver o que não havia para ser visto. Mas, voltamos rindo para o nosso tugúrio. Pudemos passear, incólumes, pela noite curitibana, tomando sorvete e rindo muito. Rio ainda quando me lembro que alguns colegas ficaram furiosos.
Mas as comemorações se sucediam. Em um sábado pleno de sol acontecia o tradicional embate futebolístico entre veteranos e calouros. Só entre meninos. Meninas só jogavam vôlei. Mas não havia veteranas suficientes e dispostas para um embate contra nós. Então só nos restava ficar na torcida. Claro que que os veteranos ganharam. Senão… não haveria churrascada e nem chope. Que tinha o patrocínio e a organização deles. Claro! E tudo realizado nas dependências do Coritiba FC, no Alto da Glória.E ainda com o Maestro Antonello e sua orquestra completando a festa em uma tarde dançante de plena confraternização.
E o Kit Abdalla, o veterano que nos deu o famigerado trote daquela noite, sorrindo feliz. Com o que arrecadou de ingressos foi paga a maior parte das despesas de nossa festa.
E havia ainda o tradicional Baile do Calouro no imortalizado Clube Thalia, com Genésio e sua Orquestra, encerrando as comemorações do ingresso de uma nova turma de futuros médicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná.