Cinema e política – pressupostos biopolíticos no filme “A Caça”

Sandro Luiz Bazzanella e Danielly Borguezan

 

a-caçaObjeto do filme

O filme dinamarquês “A Caça” (Jagten), destaca-se pela diversidade de perspectivas ao qual aduz seu enredo. É possível analisá-lo por diversos motes, dentre eles a perspectiva da persecução penal (no sentido de verificar o início de um procedimento penal e seu inquérito), bem como, o aspecto laboral, (de modo a contribuir no sentido de desmistificar que um homem pode perfeitamente exercer a atividade de docência em pré-escolas, o que é bastante incomum em nosso país).  De outro modo, o filme também anuncia e traz como “pano de fundo”, perspectivas filosóficas e jurídicas, advindas das percepções do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-). Ou seja, através do “longa” é possível perceber a condição do homo sacer, anunciada por Agambem em sua obra: “Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua” (2010), qual seja: uma figura do direito romano arcaico, o qual situa o homo sacer entre a insacrificabilidade e a matabilidade. Isto é, aquilo que esta na condição sacer, esta paradoxalmente e legalmente protegido, mas ao mesmo tempo exposto, a ponto de nenhuma pena sofrer aquele que sacrificar o sacer. Ademais, o filme também contempla uma abordagem do delicado e complexo universo, que tange o comportamento de professores, educadores e outros profissionais em se tratando de rumores e/ou de noticias de abusos sexuais envolvendo menores.

 

Enredo e suas peculiaridades

O enredo do filme: “A Caça”, se desenvolve numa pequena comunidade de interior, composto por um conjunto de famílias, que se relacionam harmonicamente em seus valores comunitários. Nesta pequena comunidade, todos se conhecem, compartilham suas vidas, suas visões de mundo e seus problemas pessoais, tal qual ocorre em muitas regiões citadinas do nosso país.

Neste cenário, um dos protagonistas do filme é o professor Lucas, 42 anos, que trabalha na escola de educação infantil da comunidade (interpretado pelo ator Mads Mikkelsen), um típico cidadão, com seus dilemas e dificuldades pessoais, provocados pelo recente divórcio e perda da guarda do seu filho Marcos (Lasse Fogelstrom), que vive com sua mãe em outra localidade.

O outro protagonista do filme é a personagem Klara (Annika Wedderkopp), uma menina com idade próxima aos 7 anos, filha de uma família do arco de relacionamento do professor Lucas.  A pequena Klara demonstra ser uma criança carente e constrangida com as questões de ordem sexual, desencadeadas pelos comentários de seu irmão adolescente e de seus amigos, em seus encontros de finais de tarde e, de semana.

A pequena Klara se sente acolhida pelo professor Lucas, que esporadicamente a acompanha de sua casa até a escola, bem como lhe permite brincar e cuidar de seu cão de estimação, levando o espectador a considerar que tal relação desencadearia na menina sentimentos de apego e afeição pelo professor.  Talvez, se possa dizer, que por meio de mecanismo de projeção, e exposição a estímulos que despertam percepções da sexualidade na pequena Klara, a menina, num determinado momento presenteia o professor, com um objeto em forma de coração. Presente este que o professor devolve imediatamente à menina e, recomenda que a mesma presenteie alguma outra criança de seu convívio. Contrariada pelo fato de não ser correspondida em suas projeções e expectativas, esta revela a diretora da escola, professora Gladis (Susse Wold), que odeia o professor Lucas e dolosamente relata ter sido exposta e visto as partes íntimas do professor.

A diretora, num primeiro momento mostra-se sensata ao conversar com o professor, expondo à ele a questão revelada pela menina. Mas, ato contínuo (compreensível no âmbito das responsabilidades que o cargo de direção lhe imputa), toma a decisão de convocar autoridade educacional e/ou policial (não fica claro no filme) especializada na intenção de interrogar a pequena Klara.  Durante a entrevista/conversa – que transcorre de modo “parcial” no sentido de induzir a menor por meio de questionamentos dirigidos para que confirme a pratica de abuso sexual promovida pelo professor – a diretora e a autoridade educacional local, interpretam que realmente houve abuso sexual por parte do professor tornando público suas conclusões  e comunicando o fato numa reunião entre professores e pais.

Subitamente as famílias do vilarejo tiram conclusões. Desnecessário dizer precipitadas, de modo unilateral e por isso reagem, reprovando profissionalmente e socialmente a atitude do professor, exigindo que o mesmo responda judicialmente por suas atitudes. Paralelamente a isso, a pequena Klara confidencia à sua mãe, que teria mentido sobre o ocorrido. A mãe não dá ouvidos, desconsidera o posicionamento da filha e se apresenta irredutível diante da condenação moral do professor.

No desenrolar dos fatos, o professor Lucas, até o surgimento do processo se vê  desprestigiado de qualquer manifestação sobre o ocorrido, sem oportunidade de defesa ou mesmo de esclarecimento sobre o fato, sobre a acusação e, precipitada condenação profissional e moral de sua condição, perante pais e professores, ou mesmo diante a direção da escola. Encontra-se assim condenado moralmente pela comunidade, onde até outrora estava integrado e era respeitado enquanto tal. Os poucos defensores manifestos do personagem e, os muitos acusadores assumem seus postos, a revelia de qualquer apreciação judicial e/ou esclarecimento dos fatos.

O personagem de Mads Mikkelsen (Lucas), ao final é considerando inocente, razão pela qual é absolvido pela total ausência de provas (autoria e materialidade), fato estes que justificaram o não seguimento da persecução penal. Este argumento por sua vez, não foi suficiente para a comunidade.

A mentira da criança, unida à conclusões precipitadas, a condenação moral, desdobrando-se na violência humana, associada a necessidade de “justiça” a ser promovida a qualquer custo, faz com que  a comunidade manifeste-se em função de uma pratica supostamente provocada pelo personagem de Lucas, o que desencadeia durante o longa, uma série de contrariedades e afrontas a dispositivos legais, ocasionados pelo afã de prejulgamentos estabelecidos.

Neste sentido, até mesmo os mais próximos como sua ex-mulher e, mesmo sua atual companheira, bem como amigos, todos se posicionam contrariamente ao personagem e, portanto, de inopino, o reprovam. Unilateralmente desconsideram sua inocência, ainda que declarada no processo (em fase de inquérito), e este se vê demitido, condenado, e toda sua vida ou modus de vida passa a ser reprovado. A sociedade dispensa de todo e qualquer respaldo legal, e por isso, julga e consequentemente o condena moralmente e até fisicamente, considerando de modo “velado” tais comportamentos serem mais “efetivos” do que àquele provocado e “solucionado” pela autoridade competente.

 

Argumentos Agambenianos no filme “A Caça”

A vida até então “qualificada” do professor Lucas, inserida numa comunidade de sentido é transformada subitamente em vida “desqualificada”, destituída politicamente das relações comunitárias em que estava inserida. O professor passa à ser alvo de agressões verbais e, no limite de sua condição à agressões físicas.

Neste ponto do filme, estamos diante do argumento agambeniano de que nas origens das estruturas políticas e jurídicas ocidentais, encontra-se o bando e não o contrato social. Com este movimento conceitual, Giorgio Agamben (1942-) questiona as visões jusnaturalistas e juspositivistas modernas, que partem da ideia de contrato social.

Neste sentido, o bando inclui, possibilita a ação entre homens, confere-lhes direitos, possibilita que os seres humanos se reconheçam e confiram sentido às suas vidas no interior do bando. Mas, na estrutura ontológica do bando esta a condição do a-bandono, da exclusão da comunidade. A condição de abandono, de banimento  do bando faz a condição contratual que lhe reconhece como cidadão se neutralize, ficando o ser humano desprotegido das estruturas políticas e jurídicas que até então lhe conferia seguranças, deveres e, sobretudo, direitos, entre eles: de ser reconhecido e respeitado profissionalmente, de participar de sua comunidade, de garantia de sua integridade física e moral.

Desta forma, na condição de a-bandono, o indivíduo perde o direito a sua humanidade, à sua condição de cidadão, de partícipe de uma comunidade, da cidade, tornando-se vida a-bandonada a própria sorte, podendo ser julgado, condenado e punido, ou, mesmo em circunstância extrema, morto, sem que ao executor seja imputado responsabilidade criminal, que também o coloque em situação de a-banono pelo bando.

Há ainda que se considerar que a estrutura do bando conformada em estruturas políticas, jurídicas e econômicas tem como fundamento primeiro prerrogativas morais, advindas de costumes e tradições, eivadas de pré-conceitos que permitem às pessoas, à comunidade o pré-julgamento de fatos e acontecimentos e, por extensão decidir sobre a vida no bando, ou a morte por a-bandono.

Neste contexto, Agamben chama atenção para a indiscernibilidade entre fato e direito, entre direito e vida. Ou seja, é nesta condição de a-bandono que se produz “vida nua” exposta à violência do bando. Já não é vida qualificada politicamente, já não é vida biológica protegida e administrada pelo poder soberano em sua capacidade de produção e consumo. É simplesmente “vida nua” destituída de reconhecimento político e jurídico, exposta à morte.

O paradoxo determinante apontado por Agamben, em relação às estruturas políticas, jurídicas, econômicas, que circunscrevem o Ocidente e, sobretudo, o Estado democrático de direito em que se circunscrevem as democracias ocidentais contemporâneas, reside nesta relação de inclusão/exclusiva da vida.  Na afirmação e ampliação da máquina/dispositivo jurídico, que legisla freneticamente sobre a vida dos cidadãos, conferindo-lhes direitos, e suposta condição de segurança, mas de reconhecer que é inerente à aplicabilidade da lei a possibilidade de sua suspensão, de retirada dos  direitos imputados ao homem e ao cidadão, remetendo indivíduos e populações a zonas de insegurança, de ausência de garantias jurídicas em relação as condições de possibilidade de manutenção da própria vida.

Ou, ainda dito de outro modo, estamos diante do paradoxo que se apresenta no fato de estarmos circunscritos em sociedades democráticas, que legislam freneticamente sobre a vida em sua totalidade. Vivemos num contexto de plena judicialização do mundo, da vida, das relações humanas e de extensão de direitos, mas tal condição não impede a manifestação do estado de exceção.

Neste sentido, em que pese os argumentos anunciados até este ponto do texto, é necessário apontar ao fato de que muito embora tenha havido um procedimento – fase pré processual – o qual objetiva a segurança para o efetivo e correto desenrolar de um processo, este concluiu, no sentido de arquivá-lo, a ponto de não dar iniciativa  a nenhum procedimento criminal tendo em vista sua inocência previamente declarada. Ocorre, que a comunidade não se considerou suficientemente segura com tal parecer, e por isso questiona, duvida e continua “julgando” e “ penalizando” o agente, o que demonstra a falta de segurança em referido instrumento.

É sob tais pressupostos, que para Giorgio Agamben urge compreendermos que estamos diante de um poder soberano que detém o “direito de vida” e “de morte” sobre  indivíduos e populações e, que suas estratégias de vigilância e controle não se direcionam ao um fazer viver qualificado, mas pura e simplesmente à um sobreviver no seio de uma sociedade de massas de vorazes produtores e consumidores, incapazes de reconhecer os dispositivos que fazem com que a máquina biopolítica em que estamos inseridos funcione diuturnamente produzindo vida nua, vida exposta à morte.

Sob tais perspectivas analíticas de fundo agambenianas apresenta-se esclarecedor. Evidentemente outras análises são possíveis e desejáveis. Mas, sobretudo, pelo fato de argumentar cinematograficamente, o quão a vida humana está exposta à violência moral e por extensão à violência jurídica, na medida em que as leis que regem a vida das sociedades é a reverberação do modus vivendi, da forma como tais sociedades compreendem o mundo, a existência e as relações humanas. O paradoxo que o filme coloca em jogo é o fato de quanto mais as sociedades humanas anseiam por segurança, maiores são os limites para a liberdade humana, para o estabelecimento de laços de confiança entre os seres humanos em suas relações sociais. Talvez até mesmo se possa dizer a luz do pensamento de Agamben, quanto mais segurança, mais intensa a manifestação da vida nua, exposta a violência moral, jurídica e até física, culminando com a execução, com o linchamento, com a queima de arquivo e, inúmeras formas que cotidianamente são veiculas pela imprensa de forma geral. Paradoxalmente: Multiplicam-se os discursos em defesa e proteção da vida, mas ao mesmo tempo expõe-se esta mesma vida às mais variadas e virulentas formas de violência.

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FICHA TÉCNICA

Título: Jagten (A Caça); Ano produção: 2012; Dirigido por Thomas Vinterberg; Estreia: 22/03/13 (Brasil); Duração: 115 minutos; Classificação:  Não recomendado para menores de 14 anos; Gênero: Drama; Países de Origem: Dinamarca

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Sandro Bazzanella, Professor de Filosofia; Coordenador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq; Coordenador do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – Universidade do Contestado. [email protected]  

 

Danielly Borguezan, Advogada, Professora de Direito; Mestranda do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq;  Membro do Grupo de Estudo em Giorgio Agamben – Universidade do Contestado e bolsista do Programa do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES. [email protected]

 

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