Com as Irmãs Franciscanas em Gaissau

Adair Dittrich reencontra lembranças do passado                                                           

 

Não sei se há trinta anos corria um trem direto de Munique para Bregenz. Se havia, não foi o que tomamos. Em determinada estação, cujo nome não gravei, necessária se fez uma baldeação. E o tempo de permanência nela era o exato tempo de descermos de um trem com nossas malas e com elas nos transladarmos para outro comboio.

Mas havia um senão. Havíamos transposto a fronteira. Necessário seria passarmos pela fiscalização aduaneira. Para a devida vistoria das bagagens. Para o devido carimbo nos passaportes. E o agente da estação com o apito na boca, dando o pode para a saída imediata do comboio. Que nem um segundo pode se atrasar. O que fazer?

Não fizemos. Todos os que lá se encontravam ajudaram-nos a, rapidamente, embarcar no trem que seguia em direção a Bregenz. Inclusive os fiscais. Rindo pelo inusitado.

Embora não conhecêssemos as freiras que foram nos receber na gare de Bregenz, fácil foi reconhecê-las. Apresentamo-nos logo que enxergamos o tradicional hábito marrom tão nosso conhecido. Levaram-nos para a casa delas, a St. Josefs-Missionshaus, em Gaissau, distante meia hora de carro.

Estávamos no canto mais ocidental da Áustria. A apenas alguns metros de um Rio Reno não tão largo ainda e a poucos passos de sua confluência no lago Constança. Exatamente na fronteira com a Suíça e a Alemanha.

 

St. Josef Haus
St. Josef Haus

Ao entrarmos na St. Josefs Haus tive a sensação de ter entrado em um espaço já há muito meu conhecido. O ar, o clima, o aroma, a roupa das Irmãs, o som, tudo como o nosso Sagrado Colégio Coração de Jesus de Canoinhas.

Levaram-nos para um aprazível apartamento onde pudemos tomar um repousante banho. Não demorou muito para que as gentis freiras viessem nos avisar que o jantar logo seria servido.

Mas, o que nós mais queríamos era ver e falar com Irmã Paula e com Irmã Carolina, com as quais, durante tantos anos, convivemos por aqui.

Irmã Carolina recuperava-se, lentamente, de um Acidente Vascular Cerebral que a deixava presa a um leito e naquela hora estaria em repouso, dormindo, talvez.

Mas Irmã Paula, toda risonha nos recebeu do alto dos seus 95 anos. Logo após o jantar ficamos por um bom tempo a conversar com ela no jardim. Espaçoso e florido jardim, rodeado de arbustos e com uma verdíssima e luzidia grama. Andava lentamente, mas, ajudada por uma jovem noviça a casa toda foi nos mostrando. Lembrava-se, e bem, de suas andanças pelo Brasil. Queria saber de minhas irmãs, principalmente de Aline, sua predileta aluna de bordado e relembrava as obras de arte que ela, com agulha e coloridos fios deixava em cada toalha.

Fomos conhecendo as instalações da grande casa. Que é uma casa de repouso para idosos. Tudo espaçoso e confortável. Salas e os apartamentos. Dentro dos padrões preconizados para o bem estar e a saúde dos hóspedes que elas se propunham cuidar.

E com regulamento rígido a ser cumprido. Então, muito cedo ainda, tivemos que nos recolher aos nossos aposentos porque a hora de dormir era chegada. Em plena luz do dia, com o sol longe ainda da linha do horizonte. Era horário de verão e estávamos perto do paralelo 50. A noite viria somente depois das dez horas.

Ríamos muito. Aquela intensa claridade com Jucy e eu já em nossas camas lembrou-me de um ano em que fora instalado o horário de verão no Brasil. Eu era aluna interna em nosso Sagrado Colégio dirigido pelas mesmas Irmãs Franciscanas. Às dezenove horas e trinta minutos em pleno calor de dezembro estávamos já deitadas, com o sol ainda alto jogando seus raios pelos janelões do dormitório. E nós, internas, ríamos sem parar naquele distante dia como ríamos nós duas agora, ali.

Bem cedo estávamos a postos para assistirmos à Missa na Capela. Para tomarmos o café da manhã. E, finalmente, visitarmos Irmã Carolina. Que Madre há muito já era.

Estava ela recostada em seu leito de enferma. Sorrindo para nós. Seus olhos irradiavam a sabedoria de uma vida. Seus olhos nos reconheceram. Seus olhos pedintes de novidades da terra onde ela viveu seus mais doces anos. Da terra para onde viera quase menina. Da terra onde exerceu a sua missão de ensinar. Missão que ela elevou aos píncaros. Não só nas matérias que lecionava em sala de aula. Ensinava música e canto também. Fundou e regeu a Scholla Cantorum Santa Cecília, precursora de nosso Coral.

Vê-la ali, em seu leito de enferma, embora recostada, embora sorrindo, embora com faces rosadas, foi uma punhalada em meu coração.

Minha amiga Jucy, tentou, com sua bela voz, amenizar aquele momento. E começou a entoar o nosso Hino Nacional. Que ela, a maestrina, regia com suas angulosas mãos.

Apesar de sua dislalia, entendemos que ela queria ouvir o Hino de Canoinhas. Conseguíamos entender o que ela tentava nos dizer. Mas o meu íntimo não conseguia aceitar. Eu que a vira, desde que eu era menina, com aquela agilidade a percorrer os corredores e a subir e a descer as escadarias de nosso Sagrado Colégio … Eu que a vira ministrar aquelas magistrais aulas sobre as mais variadas matérias, sobre os mais variados temas … Eu que vira seus dedos bailarem pelos teclados de um piano em maravilhosos concertos … Eu que a vira reger a nossa Scholla Cantorum …

E a tudo isto, em minha mente vendo, naquele momento nada mais eu vi. Porque uma cortina de lágrimas toldou minha visão. Enquanto Jucy cantava, com um lenço em minha boca os soluços eu tentei frear. Para que ela não os ouvisse. E atrás de um reposteiro as minhas lágrimas escondi. Para que ela não as visse.

Parecia uma princesa sentada em seu leito de enferma. Sem as vestes marrons com as quais eu me acostumei a vê-la durante uma vida. Imagem que em minha retina permanece.

Retiramo-nos cabisbaixas, mas, felizes por senti-la feliz em nos ver. Muita coisa de Canoinhas a ela contamos. Com seu olhar mais nos inquiria. E sorria em saber que a nossa cidade estava mais bonita e mais alegre.

Irmã Amanda, outra professora que muito nos marcou por aqui, lá passara os últimos anos de sua vida. Fomos colocar flores em seu túmulo no cemitério ao lado da St. Josefs Haus. Mais cedo ela partira para os seus céus azuis.

Mas, … aquele lar é um lar de repouso para idosos. E é a casa para onde retornavam as nossas velhas amigas Irmãs Franciscanas após findo o tempo e finda a sua missão nas terras dos longes. As que ainda em vida para lá puderam retornar.

Alpes ocidentais da Áustria
Alpes ocidentais da Áustria

As Irmãs já sabiam que nosso grande desejo era o de subir ao alto das montanhas próximas. Porque estávamos nos Vorarlberg, nos Alpes Ocidentais. Apresentaram-nos ao padre capelão, um padre jovem ainda que nos levaria em seu carro. E lá fomos nós, acompanhadas de mais três jovens freirinhas rumo a um monte próximo. Que não estava coberto de neve naquela estação do ano. Os veículos só tinham permissão para chegar até um determinado ponto da escalada. O restante do percurso, obrigatoriamente, deveria ser pelos nossos próprios pés.

Disse-nos o capelão que a distância de onde o carro ficara até o cume era de apenas quatrocentos metros. Mas, em linha reta. Para subirmos necessário era irmos dando voltas e o trajeto ficou umas cinco vezes mais longo. Mas valeu a pena contornar a montanha. Belas imagens iam desfilando de lado a lado.

Bregenz
Bregenz

Do cume do monte o deslumbrante panorama. Montanhas nevadas num distante horizonte. O casario das aldeias. O lago Constança, o Bodensee. A cidade de Bregenz de um lado, Gaissau mais além.

Um êxtase atrás do outro. E bem no alto mais alto do monte, uma antiga cruz de ferro. Em sua base uma pedra. Que ao ser removida nos mostrou uma grande caixa de metal. E dentro da caixa um livro. E no livro deixamos a marca de nossa presença junto a de milhares visitantes outros que proeza igual já tinham feito.

Onde registrado ficou o nome de Jucy e o meu. E mais o de minha vila, Marcílio Dias e o de nossa Canoinhas.

Por muitos dias ficamos hospedadas em St. Josefs Haus, em Gaissau, enquanto percorríamos as cidades e vilas nas montanhas e no entorno das margens do estreito rio Reno.

 

 

 

 

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