O estado de exceção e o poder soberano normatizaram o matar e o morrer
Graciela Márcia Fochi*
Rogério Luiz Kluamann de Souza**
Ainda no século XX Georges Bataille, Michel Foucault e Giorgio Agamben escreviam que vive-se num mundo no qual o limite da vida e da morte foi abandonado. O estado de exceção e o poder soberano normatizaram o matar e o morrer, e que o matar e o morrer exigem corpos. Recentemente, Achille Mbembe reapresentou a questão na seguinte perspectiva: Se consideramos a política uma forma de guerra, que lugar o corpo humano ocupa nessa guerra?
Os corpos, em específico, o “livrar-se” dos corpos, consistiu e consiste em uma das preocupações mais urgentes em meio aos regimes, governos, guerras e revoluções, como por exemplo: na Santa inquisição, na Revolução Francesa, nos campos de concentração nazistas, nos porões da ditaduras miliar, nas baixas da Guerra do Vietnã, da Guerra do Golfo e agora em meio ao Coronavirus/Covid-19.
No caso da covid-19 o número de mortos já está sendo computado na casa de seis dígitos e a Escolha de Sofia (a decisão sobre quem deve viver e quem deve morrer) passou a, cada vez mais, fazer parte do cotidiano dos profissionais da saúde. Bem, uma vez que foram cumpridos os trabalhos do ofício, encarados os dilemas éticos e morais, cabe deliberar e encaminhar para que os corpos sigam o curso, cheguem ao próximo destino.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministérios da Saúde (MS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicaram orientações de que o corpo morto deve ser embalado em lençóis; depois colocado em um saco impermeável próprio, e por fim dentro de um terceiro saco. Neste terceiro saco deve ser identificado a seguinte inscrição: Covid-19, Agente Biológico Risco 3. Posteriormente o corpo deve ser colocado em uma urna, em seguida a mesma deve ser lacrada e não deverá mais ser aberta.
É recomendado que o reconhecimento do corpo seja feito por um único familiar/responsável; que não haja contato direto entre o familiar/responsável e o corpo, mantendo uma distância de dois metros entre eles e que quando houver necessidade de aproximação, o familiar/responsável faça uso de máscara cirúrgica, luvas e aventais de proteção; e que dependendo da estrutura existente, o reconhecimento do corpo seja feito por meio de fotografias. Procedimentos de preparação do corpo e/ou tanatopraxia não são recomendados. A urna deve ser disponibilizada em um local aberto ou ventilado. A cerimônia não deve se estender ou favorecer aglomerações, todos devem respeitar a distância mínima de dois metros, bem como as demais posturas de higiene e respiração. Por fim, os corpos podem ser enterrados/inumados ou cremados.
Os argumentos da OMS, do MS e da Anvisa, encontram-se pautados na tese de que a transmissão de doenças infecciosas também pode ocorrer por meio do manejo de corpos, sobretudo em equipamentos de saúde e para tanto prescrevem orientações com relação à exposição ao sangue e aos fluidos corporais, ao manejo de objetos ou outras superfícies contaminadas. Porém, tal tese ainda não existe uma sólida comprovação e nem consenso na comunidade de cientistas e pesquisadores e tem favorecido interpretações e conclusões das mais variadas tendências.
Ao mesmo tempo que defendem este discurso, estas instituições e órgãos recomendam que a eliminação dos corpos das vítimas não seja de forma apressada, salientam que deve ser preservada “a dignidade dos mortos, sua cultura, religião, tradição e suas famílias”, porém, as restrições prescritas não permitem tocar e/ou preparar. Estas restrições ferem saberes e os fazeres que fazem parte dos ritos fúnebres desde os tempos mais longínquos, anteriores à constituição das instituições religiosas.
Italianos, por estarem em quarentena, não puderam velar, dar destino às cinzas ou enterrar seus mortos. Os corpos de norte-americanos não reclamados estão sendo acomodados em valas comuns. Os equatorianos não têm conseguido receber os corpos dos entes reclamados. No Brasil, o exército passou a consultar a disponibilidade e as condições de receber sepultamentos por parte dos cemitérios das cidades, já estão sendo instalados contêineres frigoríficos para guardar corpos enquanto aguardam pelo sepultamento e também estão sendo abertas valas para sepultamentos comuns. Dito de outro modo, o cortejo tem sido cumprido por meio das instâncias e protocolos clínicos, hospitalares e militares e os funerais à revelia e sem direito aos ritos finais.
As fronteiras encontram-se redimensionadas e cada vez mais subscritas ao contato com os outros, do corpo dos indivíduos e para com os ritos de despedida. A relação de aproximação de um corpo com outro, das mãos com as coisas, com os olhos, com a boca, com o nariz representam iminentes e amplos atos de suspeita e ameaça; os corpos vivos ou mortos representam perigos potenciais.
Mediante as tamanhas violações e sacrilégios, que reflexos, mudanças, rupturas, danos e problemas mais poderão ser colhidos com o passar dos dias, dos anos, das décadas e gerações?! As mais novas tecnologias de guerra encontram-se pautadas no controle e censura sobre as relações e o contato com o corpo, na banalização da morte e na profanação dos ritos fúnebres.
* Graciela Márcia Fochi é graduada em História/UPF, mestre em Patrimônio Histórico e Cultural/UNIVILLE e doutoranda em História Global/UFSC. E-mail: [email protected]
** Rogério Luiz Kluamann de Souza é graduado em Filosofia/ESES, mestre em História/UFSC, doutor em História/UFPR e pós-doutor pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais/EHESS/França